Quem visita a exposição Mulheres Radicais: arte latino-americana, 1960-1985, na Pinacoteca de São Paulo, encontra logo à entrada da sala da exibição uma linha do tempo com os principais acontecimentos políticos e culturais da América Latina ao longo do século XX. Entre eles, o direito ao voto feminino, inaugurado por nosso vizinho progressista Uruguai em 1927. Dos inúmeros fatos ocorridos na história recente do continente, a imagem de um deles se sobressai naquele painel: Dilma Rousseff sendo interrogada, após ter sido torturada por agentes da ditadura, em 1970. Na famosa fotografia, a ex-presidenta aparece com um olhar altivo e resiliente, em contraposição a seus algozes, que escondem o rosto diante da câmera. A fotografia nos expõe ao inimaginável quando nos faz pensar, quase de pronto, nas torturas praticadas pelo regime; não há dúvidas de que se trata de um testemunho histórico. Mas sua força assombrosa resulta de algo mais imediato: o contraste explícito da cena, em que oficiais escondem o rosto enquanto uma jovem prisioneira política mantém a cabeça erguida, um olhar quase sereno, mas imponente. De um lado, a manifesta covardia de um regime; de outro, a surpreendente rijeza de uma mulher de 22 anos, de ideais convictos mesmo após ter sido presa e torturada. O que vemos ali é o vigor do corpo político encarnado pela figura da mulher durante o regime militar.
Esse corpo que congrega diferentes marcas da violência e da opressão, em um período turbulento em todo o continente, se aproxima da poética dos corpos conduzida pelas 120 artistas latino-americanas que integram a exposição. O elo entre elas é exatamente a ideia do corpo político e radical, mote estabelecido pelas curadoras da mostra, a venezuelana-britânica Cecilia Fajardo-Hill e a ítalo-argentina Andrea Giunta. As artistas de Mulheres radicais protagonizaram uma virada iconográfica[1] da maior relevância ao capitanearem inúmeras investigações que possibilitaram uma nova representação do corpo, para além de sua função biológica e moral. E para tanto recorreram às linguagens mais experimentais, como a performance, o vídeo e a fotografia. O giro iconográfico operado por essas artistas gerou a maior contribuição da arte do pós-guerra até o presente, de acordo com Giunta.
Vale notar que muitas vozes da crítica de arte brasileira, nos lugares de visibilidade que ocupam, não deram a devida atenção aos múltiplos sentidos evocados pela exposição. As posições, que vão de resenhas apressadas à circulação de textos sem uma leitura mais reflexiva,[2] levam a supor que a nossa crítica não se deu conta da colaboração crucial dessas artistas para a história da arte mais recente. Seria esse silêncio um sintoma dos resquícios patriarcais e machistas ainda incrustados nos meios artísticos brasileiros? Seria o efeito da inauguração da Bienal de São Paulo, cuja máquina expositiva hegemônica captura todos os holofotes, esvaziando da reflexão merecida o circuito paralelo? Ou, ainda, decorreria da falta de interesse de parte da crítica em discutir a arte contemporânea dentro do prisma latino-americano?
A exposição inclui nomes consagrados e conhecidos do público brasileiro, como Lygia Clark, Lygia Pape e Anna Maria Maiolino. Não obstante, esses trabalhos ganham uma nova camada de significação quando vistos sob o argumento curatorial, que aborda o efeito emancipatório suscitado pelas múltiplas pesquisas realizadas com o corpo. O conjunto de obras não se esgota com uma leitura única; talvez por isso, no contexto expositivo, é apresentado por meio de eixos temáticos propostos pelas curadoras, as quais, na edição brasileira, tiveram a colaboração de Valéria Piccoli. São eles: Autorretrato; Paisagem do Corpo; Performance do Corpo; Mapeando o Corpo; Resistência e Medo; O poder das Palavras; Feminismos; Lugares Sociais; O Erótico. Diante dessa nova configuração, essas obras ativam outras interpretações e apontam pautas e problemas comuns, reunindo muitas artistas que até então não se conheciam.
Segundo as curadoras, essas artistas provocaram uma inversão fundamental do ponto de vista representacional. O corpo feminino, historicamente atrelado ao olhar masculino, emancipou-se ao originar novos saberes e outras formas de representação. Por meio dos núcleos temáticos, Mulheres radicais conduz o público a esse precedente essencial inaugurado pelas artistas, que é justamente a mudança da autoria do olhar. As obras expostas evidenciam que o olho externo, guiado pelo desejo masculino, perde o sentido diante da potência do olhar interno que se autodescobre, possibilitando novas experimentações com o corpo.
Por que radicais? Por que corpo político?
“Nós pensamos a noção de corpo político, que é um conceito muito rico e muito complexo, de diferentes maneiras. Em primeiro lugar, porque muitas dessas obras foram realizadas em situações de vigilância extrema, durante a ditadura. Outras foram realizadas em relação com a militância e o compromisso político, acreditando que fosse possível uma transformação da sociedade (Margarita Paksa ou Gracia Barrios, por exemplo). E também nos referimos ao corpo político porque muitas das artistas estiveram presas ou exiladas. E é igualmente político porque elas atuaram sobre os acordos estéticos estabelecidos: as iconografias do feminino estavam predominantemente nas mãos dos artistas homens, que foram os que realizaram 99% dos nus que conhecemos na história da arte. Trata-se de um olhar externo, patriarcal, guiado pelo desejo masculino. O que a exposição faz é evidenciar que o corpo é observado, experimentado, conceitualizado a partir de um olhar interno, que navega o corpo, que o representa de uma maneira nova, quase sem precedentes. Por isso, no meu ensaio no catálogo, me refiro a um giro iconográfico radical: temas que nunca haviam sido representados começam a sê-lo. […] Por fim, o sentido político do corpo também reside no fato de que utilizaram seus próprios corpos como ponto de partida e objeto de exploração e de investigação, levando-os a extremos inéditos, e recorreram, ademais, às linguagens mais experimentais: a performance, o vídeo, a fotografia.”
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Durante o marco temporal da mostra, muitas artistas não se autodenominaram feministas, apesar de a crescente pauta do direito das mulheres integrar o horizonte político e cultural no qual estavam inseridas. Em sintonia com esse dado histórico, a curadoria não aborda o trabalho de todas as artistas sob a égide do feminismo, embora parta de uma metodologia feminista ao dar visibilidade a centenas de trabalhos que, até então, não haviam sido articulados sob essa perspectiva. Sobre o assunto, Giunta falou à figas:
“Nós não classificamos as artistas como feministas, partimos das identificações delas mesmas. Por isso, há um tema na exposição, uma zona sobre feminismo. Evidentemente, nossa decisão de exibir apenas mulheres parte de nosso próprio feminismo. […] Nossa perspectiva como curadoras e historiadoras é feminista. Mas não quer dizer que as artistas sejam feministas. Muitas delas, inclusive, afirmam isso. Por exemplo, muitas artistas brasileiras: no Brasil, arte e feminismo não se vincularam nos anos 1960 e 1980”.
Outro aspecto positivo da mostra é a sua disposição para reunir trabalhos de múltiplas linguagens, produzidos em um período fundamental para a sedimentação da arte contemporânea. Desde a década de 1960, observam-se os primeiros sinais de esgotamento da retórica modernista, possibilitando a expansão do papel da obra de arte como agenciadora de pautas extra-estéticas. Se, por um lado, o discurso modernista neutralizou o objeto artístico, sobretudo o pictórico, inserindo-o em uma ficção linear cujo ápice foi a descoberta de seu medium próprio – a superfície bidimensional –, por outro, uma revisão crítica dessa conjuntura autônoma da arte buscou contaminar seu regime com outros enunciados políticos, sociais e estéticos.
A etiqueta historiográfica que deu conta dessa guinada das práticas experimentais na arte ficou conhecida como arte conceitual. Esse movimento apontou para um problema basal naquele momento: a redefinição do conceito de arte e do objeto artístico para além de sua materialidade. É sabido, no entanto, que os rumos do conceitualismo na América Latina foram distintos daqueles dos centros metropolitanos. Do lado de cá, a arte conceitual foi assumida como ação estratégica para discutir a realidade social, política e econômica da região. A precariedade dos materiais, por exemplo, em sintonia com essa realidade, foi assumida como um conjunto de proposições críticas. É o caso da artista e poeta chilena Cecilia Vicuña, que na década de 1960 criou obras efêmeras baseadas no que chamou de arte precario. A série Basuritas era constituída por pequenas esculturas feitas com materiais encontrados no lixo, nas ruas e na natureza, como galhos de árvore, fios e tecidos. A sutileza das formas precárias materializadas em construções espaciais, produzidas a partir de elementos destinados a desvanecer, evocava a história dos povos originários, especialmente das mulheres ancestrais.[3]
Desde a década de 1990, a arte conceitual latino-americana tem sido objeto de inúmeras pesquisas, dentre elas o ensaio da porto-riquenha Mari Carmen Ramírez, Tactics for Thriving on Adversity: Conceptualism in Latin America, 1960-1980, de 1999, e o livro escrito pelo artista uruguaio Luis Camnitzer, Conceptualism in Latin American Art: Didactics of Liberation, de 2007. A despeito do mérito de elaborarem um corpo teórico inédito sobre relevância do movimento fora dos grandes centros, ambos autores, de acordo com Cecilia Fajardo-Hill, demonstraram escasso interesse no papel desempenhado pelas artistas mulheres em seus relatos sobre o conceitualismo. Inclusive, o recorte que definiram para a arte conceitual partia de uma leitura quase macropolítica que a revestia de uma aura heroica e militante, com pouco espaço para “interjeições mais subjetivas e lutas pessoais”.[4] A exposição responde à emergência de anunciar outras narrativas às práticas experimentais, trazendo à tona novas perspectivas que não haviam sido investigadas – e, do mesmo modo, escapando dos relatos canônicos da história da arte, que se cristalizaram a sob valores patriarcais, racistas e de classe.
Na abertura de Mulheres radicais, a Pinacoteca de São Paulo organizou um encontro com as curadoras e algumas artistas convidadas. Na ocasião, o público teve a chance de conhecer e ouvir o relato das chilenas Cecilia Vicuña e Paz Errázuriz, da colombiana María Evelia Marmolejo, da mexicana Maria Eugenia Chellet, além de acompanhar a apresentação das brasileiras Iole de Freitas e Vera Chaves Barcellos. Nas entrelinhas das falas, ficou evidente a atmosfera repressiva onipresente que agiu sobre os corpos e sobre o terreno da criação de todas essas artistas.
A obra de Marmolejo, por exemplo, foi diretamente marcada pela tensão política na Colômbia. Sua fala revelou o impacto da violência descomedida que torturou amigos próximos e familiares, simbolizada em alguns de seus trabalhos do começo da década de 1980. Em homenagem aos desaparecidos, a colombiana realizou uma performance na qual cortava os dedos dos pés e depois caminhava por uma longa faixa de papel, deixando as marcas de sangue sobre a superfície branca. Além do estado de exceção, a artista teve de lidar com o conservadorismo das academias de arte, que frequentemente reprovavam proposições de caráter experimental.
Durante a palestra, Cecilia Fajardo-Hill assinalou uma dupla forma de repressão vivenciada pelas artistas: a incompreensão do sistema artístico e a violência política. A curadora enxergou uma força vital diretamente ligada à produção das artistas mulheres. O que as faz continuar? O que lhes dá força? O relato impactante de Marmolejo revela a dimensão da dor como elemento deflagrador da obra de arte, principalmente em um cenário caracterizado pela indiferença de parte da população em relação ao ambiente de constante brutalidade.
Na entrevista de Cecilia Vicuña à FIGAS, a chilena também se emocionou ao lembrar a ruptura política em seu país, após a abreviada experiência socialista do governo Salvador Allende. Curiosamente, o elemento que ativou essa memória foi a presença do crítico brasileiro Mário Pedrosa no Chile e as iniciativas culturais da Unidade Popular, das quais participou ativamente. Após o golpe de 11 de setembro de 1973, Vicuña, como tantas outras artistas, buscou exílio na Europa.[8] Os quase mil dias do governo Allende representaram um sopro de esperança para muitos latino-americanos que lá buscaram abrigo e uma possibilidade real de renovação política e cultural em um continente que era gradualmente minado pelos militares com o evidente apoio dos Estados Unidos. O golpe de Augusto Pinochet não só sepultou a promessa de um governo socialista e democrático na região como também produziu uma diáspora de exilados que tiveram de sair às pressas do Chile. A partilha de um projeto coletivo e democrático de integração latino-americana foi substituída por outra modalidade de união continental, porém, de contornos sinistros: a Operação Condor.
A experiência traumática da ruptura, dos golpes, da fragmentação política e da atmosfera opressiva é um elemento que incidiu diretamente sobre o corpo dessas artistas. Suely Rolnik escreveu sobre esse poder transformador da arte que ficou soterrado pelos efeitos do trauma das ditaduras. A psicanalista enxergou nas vias micropolíticas um território essencial de criação e de “cura” dos eventos traumáticos, para “desentranhar futuros”.[9] A força da micropolítica concentrada nesses corpos evoca essa memória dolorosa, ativando novas potências para lidar com o presente.
Durante o golpe de 2016, mais uma vez o corpo da mulher foi desqualificado simbolicamente e, desde então, as tentativas de desumanizá-lo continuam em curso. É por isso que Mulheres radicais é tão atual e imprescindível para o nosso momento histórico, em especial no Brasil. Vale lembrar que em outubro completaram-se sete meses do assassinato de Marielle Franco, em uma tentativa de silenciar a veemência que o seu corpo político representava para as mulheres, sobretudo as negras e periféricas. As milícias fascistas continuam reforçando o extermínio de suas ideias e de sua política, algo evidente no grotesco episódio da quebra da placa de rua em homenagem à ativista. O grande levante popular #elenão levou a diversas cidades do Brasil e do mundo milhares de mulheres que se uniram para barrar o avanço do candidato declaradamente machista e a favor da tortura. São os mesmos “profissionais da violência” que pretendem fazer do corpo da mulher uma moeda de troca no parlamento, aniquilando todos os direitos conquistados ao longo do último século. Muitos desses direitos estão registrados na linha do tempo da exposição, a mesma que mostrava a imagem da ex-presidenta encarando seus algozes. Já nos dizia Pedrosa, “Nesse momento de crise e de opção, devemos optar pelos artistas”.
[1] Ver o ensaio “A virada iconográfica: a desnormalização dos corpos e sensibilidades na obra de artistas latino-americanas”, de Andrea Giunta, no catálogo da exposição Mulheres radicais: arte latino-americana, 1960-1985. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2018, p.29.
[2] Entre os ensaios que apresentaram uma leitura mais aprofundada da mostra, podemos citar:
Mulheres radicais: arte latino-americana, 1960-1985. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2018.
“Tensão, subjetividade e feminino na obra de artistas e ativistas”, de Leonor Amarante e Patrícia Rousseaux, para a revista Arte!Brasileiros. [Acesso em 25 set. 2018.];
“Exposição Mulheres Radicais transforma corpo feminino em sujeito”, de Gabriela Longman, para a Folha de S.Paulo. [Acesso em 25 set. de 2018.];
e o artigo da própria curadora, Cecilia Fajardo-Hill, com o título “’Mundo das artes é sexista’, diz curadora de exposição sobre mulheres”, também publicado na Folha de S.Paulo. [Acesso em 25 set. 2018.]
[3] Ver o ensaio “Cecilia Vicuña: la persistencia del gozo”, de Lucy Lippard, no catálogo Artists for Democracy: El archivo Cecilia Vicuña, organizado por Paulina Varas. Santiago: Museo Nacional de Bellas Artes e Museo de la Memoria y los Derechos Humanos, 2014.
[4] Ver o ensaio “A invisibilidade das artistas latino-americanas”, de Cecilia Fajardo-Hill, no catálogo Mulheres radicais: arte latino-americana, 1960-1985. Curadoria e textos de Cecilia Fajardo-Hill e Andrea Giunta. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2018, p.25.
[5] Ver a introdução do livro Escribir las imágenes: ensayos sobre arte argentino y latinoamericano, de Andrea Giunta. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2011, pp. 9-20.
[6] Ver o ensaio “No son todas las que están ni están todas las que son”, de Carla Stellweg, no catálogo Mulheres radicais: arte latino-americana, 1960-1985, op. cit., p.295.
[7] Caracterizados pelo uso de trajes extravagantes, os pachucos foram descritos pelo escritor mexicano Octavio Paz como “rebeldes instintivos” abatidos pelo racismo norte-americano, muito embora não reivindicassem a nacionalidade de seus antepassados. Ver “O pachuco e outros extremos”, no livro O labirinto da solidão, de Octavio Paz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
[8] Na época da ditadura, a artista passava uma temporada em Londres, depois de ter ganhado uma bolsa de estudos. Logo após o golpe de Estado, Vicuña organizou campanhas de solidariedade ao Chile, criando com outros artistas o movimento Artists for Democracy, na capital inglesa.
[9] Ver o ensaio “Desentranhando futuros”, de Suely Rolnik, no livro Conceitualismos do Sul, organizado por Cristina Freire e Ana Longoni. São Paulo: Annablume, 2009, pp.155-63.