“O que buscamos é transformar critérios”: uma entrevista com Andrea Giunta
Uma das curadoras de Mulheres radicais: arte latino-americana, 1960-1985 – a vultuosa exposição em cartaz na Pinacoteca de São Paulo –, Andrea Giunta fala à FIGAS sobre feminismo, o espaço das mulheres no mundo das artes e as estratégias que ela emprega para mudar paradigmas Uma das curadoras de Mulheres radicais: arte latino-americana, 1960-1985 – a vultuosa exposição em cartaz na Pinacoteca de São Paulo –, Andrea Giunta fala à FIGAS sobre feminismo, o espaço das mulheres no mundo das artes e as estratégias que ela emprega para mudar paradigmas
Andrea Giunta, à direita, e Cecilia Fajardo-Hill, à esquerda, durante evento de abertura de Mulheres radicais, na Pinacoteca de São Paulo. Fotografia: Vanessa Nicolav
por Luiza Mader Paladino por Luiza Mader Paladino

Historiadora, curadora, docente e pesquisadora da arte argentina, latino-americana e internacional do período do pós-guerra até a atualidade, Andrea Giunta se diferencia de muitos colegas de sua área por pensar a produção artística para além de sua dimensão puramente estética. Sempre preocupada com questões políticas e sociais, desde a década de 1990 ela tem se dedicado ao estudo das relações entre arte e feminismo. No Brasil, além da curadoria de Mulheres radicais: arte latino-americana, 1960-1985, realizada em parceria com Cecilia Fajardo-Hill, ela também organizou a mostra León Ferrari: retrospectiva, 1954-2004, na mesma Pinacoteca de São Paulo, e recentemente foi escolhida para ser a curadora-chefe da 12ª Bienal do Mercosul, a ser realizada em abril de 2020 em Porto Alegre.

Em entrevista à FIGAS, Andrea fala sobre feminismo, a presença das mulheres no campo das artes, a conjuntura social e política da América Latina e, claro, sobre a experiência de organizar uma mostra tão extensa e plural como Mulheres radicais.

 

Desde a década de 1990 você investiga a obra de algumas artistas latino-americanas, como Ana Mendieta e Graciela Sacco, para citar dois ensaios publicados no livro Escribir las imágenes: ensayos sobre arte argentino y latinoamericano.  Neste ano você lançou a obra Feminismo y arte latinoamericano: historias de artistas que emanciparon el cuerpo. E, no ano passado, junto com Cecilia Fajardo-Hill, organizou a mostra Mulheres radicais: arte latino-americana, 1960-1985, que passou por Los Angeles, Brooklyn e atualmente está na Pinacoteca, em São Paulo. Você poderia falar um pouco sobre sua relação com as questões de gênero e feminismo a partir de uma perspectiva latino-americana?

Sim, é verdade. Comecei a trabalhar a partir de uma perspectiva de gênero nos anos 1990. Segui por esse caminho até 2008, quando publiquei na revista espanhola ExitBook um artigo sobre arte e feminismo na América Latina. Foi precisamente por conta desse artigo que Cecilia Fajardo-Hill chegou a mim em 2010, quando começamos, então, as conversas sobre a exposição [Mulheres radicais], a qual se materializou sete anos mais tarde. Ao longo das pesquisas, comecei a trabalhar com outros dados que provinham de estatísticas, não da teoria. As perspectivas de gênero e a teoria me permitiam resolver problemas que na prática estavam quase intactos e que se materializaram por essa escassa representação das mulheres no mundo da arte. Nesse sentido, comecei a realizar um duplo trabalho. Por um lado, desarmar os ideologemas[1] que mantêm o status quo do mundo da arte – noções como “qualidade” ou “gueto”, usadas para se referir a exposições que só apresentam artistas mulheres – a partir do trabalho com estatísticas. Por outro, focar em casos que possibilitassem uma abordagem, com instrumentos específicos, de obras que praticamente não são analisadas ou que sequer são denominadas como obras. Por exemplo, os filmes feministas de María Luisa Bemberg ou a obra de Nelbia Romero.

Chegamos a 2015 com elevados índices de feminicídio e de violência contra a mulher, bem como com o status de ilegalidade do aborto. Isso quer dizer que pontos básicos da agenda pensada nos anos 1960 continuam em aberto

No entanto, é claro que tenho consciência de que, se ficarmos presos apenas aos números, também não conseguiremos mudar os paradigmas. Isso só vai acontecer, acredito, com o estudo das obras, com hipóteses específicas, com trabalho de [constituição de] arquivos, com densidade analítica. Esse longo processo de investigação também me permitiu compreender por que não houve na maior parte da América Latina um feminismo comparável com a articulação que existiu, por exemplo, no México. Minhas conclusões são semelhantes àquelas apresentadas por Roberta Barros em seu excelente livro Elogio ao toque, ou como falar de arte feminista à brasileira, que acabo de descobrir e ler. A política de esquerda não apoiou os movimentos feministas por considerá-los burgueses e em descompasso com uma militância que propunha a transformação completa da sociedade. As ditaduras, por sua vez, eliminavam toda possibilidade de associação para a luta por qualquer direito. Quando a democracia retornou, a situação era outra, já não se falava de feminismo sem se falar de gênero, e foi por meio dos estudos de gênero, os quais iam se estabelecendo em diversas universidades, que a problemática da mulher adentrou o debate acadêmico. Esses estudos se instituíam, como se sabe, a partir de perspectivas não essencialistas e abarcavam agendas queer, LGBT, intersecionais.[2] No entanto, chegamos a 2015 com elevados índices de feminicídio e de violência contra a mulher, bem como com o status de ilegalidade do aborto. Isso quer dizer que pontos básicos da agenda pensada nos anos 1960 continuam em aberto; por exemplo: os grupos que se manifestavam pela descriminalização do aborto não tinham uma presença massiva. Tudo isso mudou na Argentina desde 2015, e esse movimento vem crescendo. A campanha pela liberdade de interromper a gravidez não teve aderência instantânea. Há histórias de que se baixavam os cartazes verdes das primeiras fileiras de manifestações contra o feminicídio. Hoje todas essas lutas se fundiram. No Brasil, por exemplo, o feminismo negro, intersecional, é muito forte.

 

 

Em algumas entrevistas você mencionou que o feminismo não é uma prática de confrontação, mas um instrumento pedagógico de transformação. Como mobilizar esse viés pedagógico no sistema da arte? Essa estratégia se aproximaria da do movimento Nosotras Proponemos? Poderia falar um pouco sobre essa proposta fundamental que tem sido desenvolvida na Argentina?

É claro que sempre há elementos de confronto. Evidenciar as desigualdades, ou os agentes que se voltam predominantemente contra os corpos das mulheres, envolve uma forma de confrontação da verdade. Mas aprendemos que o punitivismo não é a solução. Que é necessário explicar, argumentar, e que a empatia – a capacidade de identificação com a injustiça praticada contra as mulheres, contra os corpos, a desigualdade em termos de salários e, no campo da arte, a forma excludente como ela funciona –, todas essas possibilidades de identificação, de conhecimento podem produzir uma transformação mais efetiva que o castigo. Trata-se, por outro lado, de um processo de transformação que todos temos de aprender, pois as estruturas patriarcais também atravessam as mulheres [também se expressam e se reproduzem nas práticas delas].

 

Andrea em meio a outras integrantes do Nosotras Proponemos durante as manifestações pró-direito ao aborto, na Argentina. Fotografia gentilmente cedida por Jaque Al Arte

 

O Nosotras Proponemos levanta práticas muito concretas de discriminação no mundo da arte. Por exemplo: se, por um lado, algo em torno de 60% do corpo discente das escolas de arte, em média, é constituído por mulheres, por outro sua representação no mercado da arte é de, mais ou menos, 20%. Com o Nosotras, trabalhamos pela representação igualitária nesse meio, e recentemente conseguimos que o regulamento do Salão Nacional de Artes Visuais [da Argentina] passasse a incluir uma cláusula de representação igualitária. Também enfocamos estratégias de visibilidade que permitam ao público compreender que as artistas mulheres representam menos de 10% das coleções que integram museus de arte. E ao mesmo tempo participamos intensamente da campanha pela legalização do aborto, contra a legislação que vem ganhando espaço na Argentina – que impõe a repressão da expressão pública nas ruas –, contra a redução dos ministérios, contra os cortes no financiamento da educação, da saúde, da pesquisa científica, contra as demissões e o endividamento públicos. Quer dizer, temos ao mesmo tempo uma agenda específica e uma agenda geral.

 

Como os critérios de qualidade contribuíram para a exclusão e a invisibilidade de artistas mulheres ao longo do século XX?

Os critérios de qualidade não são claros nem regulares, dependem de cada curador, são conjunturais, mudam. A noção de qualidade é um ideologema que se enuncia cada vez que se fala de representação igualitária: na arte, não importaria o gênero, mas a “qualidade”. Mas ninguém pode definir o que é qualidade. Então o gosto dominante, que está formatado por critérios patriarcais – as obras que vemos são sempre de artistas homens, são as que conhecemos e que por isso as apreciamos, por isso pensamos que são boas – que se reproduzem em estereótipos e deixam a cidadania sem a possibilidade de expandir seu sentido estético, seu conhecimento, seus afetos. A curadoria de Waltercio Caldas na [33ª] Bienal de São Paulo é um bom exemplo de patriarcado estético.

 

Muitas artistas da exposição não se identificaram com a pauta feminista no período demarcado pela mostra (1960-1985); no entanto, o discurso feminista e o ativismo político conformaram para elas um horizonte crítico da maior importância. Como a pauta feminista contribuiu para a radicalização das práticas experimentais? E como a metodologia que você chama de feminismo artístico, ou seja, uma historiografia que abranja a pauta feminista, foi mobilizada na curadoria de Mulheres radicais?

Nós não classificamos as artistas [que integram a exposição Mulheres radicais] como feministas. Partimos das identificações delas mesmas. Por isso o que há na exposição é apenas um eixo temático, uma parte da mostra, sobre feminismo. É claro que nossa decisão de expor apenas mulheres parte de nosso próprio

Imagem do banner da exposição Mulheres radicais na fachada da Pinacoteca de São Paulo. Divulgação

feminismo: exibimos obras de 125 mulheres, das quais os especialistas não conhecem mais que trinta, com vistas justamente a expandir sua visibilidade, para que o público pudesse acessar as obras que estavam ocultas. Recentemente me escreveu Luis Camnitzer, que a princípio se opunha à realização dessa exposição, e agora reconhecia estar gratamente surpreendido. Disse que se fosse reeditar seu livro sobre conceitualismo,[3] teria de reescrevê-lo todo, e que lamentava não ter podido ver essa profusão de obras. É isto o que buscamos: transformar critérios.

Nossa perspectiva como curadoras e historiadoras é feminista. E, nesse sentido, esta é uma exposição feminista. Mas isso não quer dizer que as artistas sejam feministas

Creio que a exposição se investe de uma grande generosidade, porque está belamente desenhada e fornece ao espectador muitos instrumentos para compreender as diversas obras. A arte é experiência; em primeiro lugar, por meio do contato com as obras, evidentemente. Mas, à medida que se conhece mais sobre o que o artista pensou, sobre as circunstâncias nas quais a obra foi realizada, o gozo se expande. Em termos gerais, reconheçam-se elas como feministas ou simplesmente como artistas mulheres, essas artistas estiveram imersas em um horizonte histórico que continuamente ativava uma agenda feminista, que punha em relevo a forma como se dava a transformação social do lugar da mulher. É por isso que as selecionamos. Nossa perspectiva como curadoras e historiadoras é feminista. E, nesse sentido, esta é uma exposição feminista. Mas isso não quer dizer que as artistas sejam feministas. Muitas, inclusive, afirmam isso. Por exemplo, muitas artistas brasileiras: no Brasil, arte e feminismo não se vincularam entre os anos 1960 e 1980.

 

Vivemos um momento de ascensão das pautas moralistas e conservadoras conduzidas pela direita e extrema direita latino-americanas, que buscam regular cada vez mais o corpo das mulheres. No Brasil, há fatos reais alarmantes, como o crescimento do feminicídio e, mais recentemente, a execução da vereadora e ativista política Marielle Franco. Com relação à exposição Mulheres radicais, o enfoque conceitual da curadoria se ampara na ideia de que o corpo político deflagrou uma virada iconográfica radical nas representações até então existentes, potencializando uma nova sensibilidade para além do corpo social e moralmente estabelecido. Nesse sentido, qual a importância de uma proposta curatorial como a desta exposição para ampliar o debate sobre o corpo da mulher na atualidade?

Nós pensamos a noção de corpo político, que é um conceito muito rico e muito complexo, de diferentes maneiras. Em primeiro lugar, porque muitas dessas obras foram realizadas em situações de vigilância extrema, durante a ditadura. Outras foram realizadas em relação com a militância e o compromisso político, acreditando que fosse possível uma transformação da sociedade (Margarita Paksa ou Gracia Barrios, por exemplo). E também nos referimos ao corpo político porque muitas das artistas estiveram presas ou exiladas. E é igualmente político porque elas atuaram sobre os acordos estéticos estabelecidos: as iconografias do feminino estavam predominantemente nas mãos dos artistas homens, que foram os que realizaram 99% dos nus que conhecemos na história da arte. Trata-se de um olhar externo, patriarcal, guiado pelo desejo

Placa da rua que homenageia Marielle Franco no Rio de Janeiro, quebrada por partidários da extrema direita durante a campanha presidencial de 2018 e substituída por iniciativa dos progressistas. Reprodução

masculino. O que a exposição faz é evidenciar que o corpo é observado, experimentado, conceitualizado a partir de um olhar interno, que navega o corpo, que o representa de uma maneira nova, quase sem precedentes. Por isso, no meu ensaio no catálogo me refiro a um giro iconográfico radical: temas que nunca haviam sido representados começam a sê-lo. Sob essa perspectiva, considero que essas artistas produziram a maior contribuição da arte do pós-guerra até o presente. Por fim, o sentido político do corpo também reside no fato de que utilizaram seus próprios corpos como ponto de partida e objeto de exploração e de investigação, levando-os a extremos inéditos, e recorreram, ademais, às linguagens mais experimentais: a performance, o vídeo, a fotografia.

 

Notas

[1] Critérios ou princípios que garantem a coesão e a coerência de um discurso social. [N. E.]

[2] Intersecionalidade é um termo que busca expressar que a luta feminista não é nem pode ser uniforme porque mulheres em diferentes condições vivenciam sua experiência feminina de formas diferentes, estando, portanto, submetidas a outras formas de sujeição que não aquelas experimentadas por mulheres brancas, heterossexuais, cisgêneras e sem deficiências. Ainda que essa noção já circulasse nas discussões do movimento feminista, associa-se a cunhagem do termo à advogada e defensora de direitos civis Kimberlé Williams Crenshaw, que o teria formulado em um trabalho apresentado no Fórum de Direito de 1989 da Universidade de Chicago com o título “Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics” [Desmarginalizando a interseção entre raça e sexo: uma crítica feminista negra da doutrina antidiscriminação, da teoria feminista e da política antirracista]. Nas palavras da autora, intersecionalidade expressa “A visão de que as mulheres experimentam a opressão em configurações variadas e em diferentes graus de intensidade. Padrões culturais de opressão não só estão interligados, mas também estão unidos e influenciados pelos sistemas intersecionais da sociedade. Exemplos disso incluem: raça, gênero, classe, capacidades e etnia”. [N. E.]

[3] Camnitzer, Conceptualism in Latin American Art: Didactics of Liberation. Austin: University of Texas Press, 2007.

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