cartas na mesa02of_figas

Cartas na Mesa #2

A relação entre racismo, política, economia e cultura poucas vezes foi tão explícita. Por isso, em nosso primeiro bloco, a discussão é sobre o racismo escancarado dos governos Trump e Bolsonaro. Em seguida, conversamos com Luiz Eduardo Rossini, psicólogo da Penitenciária II de Sorocaba, sobre como a covid-19 tem afetado presos e funcionários do sistema carcerário.

jojo

Jojo Rabbit e seus inimigos

Volto para cumprir a promessa, leitor. Da última vez que nos encontramos nesta coluna, afirmei que as ficções são um modo de dar alguma materialidade aos nossos valores. E disse que há critérios para distinguir boa e má ficção (assim como há critérios para distinguir bons e maus valores). Se não estiver convencido, volte uns dias e encontrará a humilde argumentação deste escrevinhador. Mas, para sumarizar: há as ficções que nos fazem ver melhor o mundo, ao mesmo tempo que embelezam a realidade. Há outras que simplesmente nos alienam do mundo, num escapismo pueril e trivial. Este tipo de ilusão, digo agora, tem grande potencial para nos lançar em labirintos, para nos turvar a realidade diante de nossos olhos, para nos levar a comprar gatos por lebres. E há, é claro, muita coisa que fica entre esses dois extremos.

Veja, então, o caso em pauta: o ótimo filme de Taika Waititi (que, aliás, ganhou há uns meses o Oscar de roteiro adaptado) parece corroborar a tese da semana passada: a de que nossas ficções moldam nosso mundo. Ele ilustra, na verdade, um caso particular dessa tese geral. As ficções infantis moldam os mundos das crianças: os pequenos realmente veem os monstros, fadas, castelos e mundos perdidos que inventamos para elas. Seu próprio poder de ficcionalizar parece ilimitado: Hitler realmente vivia ao lado de Jojo, assim como Haroldo vive ao lado de Calvin — que ambos sejam imaginários não faz nenhuma diferença; o efeito que eles causam é igualmente real. Não é à toa que Platão inicia a fundação de sua cidade ideal (nos livros II e III de sua obra-prima) triando cautelosamente o tipo de ficção a que as crianças seriam submetidas. Platão sabia que as virtudes (nós diríamos “valores”) incorporadas por heróis e deuses nas epopeias iriam moldar a alma dos cidadãos, a constituição da cidade, todo o seu aparato psíquico e epistemológico, seu modo de ver o mundo. O Hitler de Jojo molda seu mundo, ao mesmo tempo que materializa seus valores.

O filme tem mais momentos altos: linda fotografia, atuações tocantes dos protagonistas; uma composição que funciona — identificamo-nos com o herói, que tem sua cegueira, seus percalços, sua epifania, sua transformação; os pequenos detalhes dos planos que mostram o fascínio do menino pelos pés da mãe, até que eles estejam fatalmente suspensos; e os contagiantes alívios cômicos com que somos agraciados a cada três minutos (um crítico mais severo talvez dissesse que o filme todo é um grande alívio cômico).

No entanto, todo o cuidado com a criação não impede o filme de comunicar para seus espectadores um mundo tipicamente simplificado, potencialmente desencaminhador. Digo “tipicamente” porque Jojo Rabbit é um filme do seu tempo, que navega calmamente nas expectativas e demandas de um público que leva embotado o seu sentido para as relações entre ficção e realidade de que tenho falado, semana passada e agora.

Nossos inimigos nunca são enfrentados como o que são, mas como estúpidos ou mal-intencionados — esse falso dilema que nos aprisiona sempre que temos falado de política

Veja, então, um modo muito específico de ficcionalizar a realidade. Corte para os anos 1940: os nazistas são maus; eles lavam cérebros infantis, e treinam meninos de dez anos para a guerra; eles veem mulheres como máquinas de parir; eles são insensíveis à dor e ao sofrimento dos seus — até mesmo das suas crianças; eles cultuam a ignorância e — ignomínia! — oferecem cigarros aos seus pobres aprendizes. Vocês veem, eu posso continuar indefinidamente; o filme dá livre vazão às suas caricaturas. É claro que na ficção e nessas comédias leves pouco importa o que seja verdadeiro ou falso — e não estou acusando um blockbuster de espalhar fake news sobre o nazismo. Nem se trata de responsabilizar os artistas pelos efeitos nocivos de suas obras. (Não queremos repetir Platão, que em sua República fez Sócrates defender a censura e o controle estatal da produção da ficção — para o bem maior da polis.) Nem se trata de avaliar esse filme como um evento isolado, mas de examinar a mentalidade de que ele compartilha. Nossos inimigos nunca são enfrentados como o que são, mas como estúpidos ou mal-intencionados — esse falso dilema que nos aprisiona sempre que temos falado de política.

Não saberemos lidar com o nazismo, um dos momentos mais desprezíveis da civilização ocidental, se não entendermos suas motivações profundamente humanas — e, portanto, cheias de zonas cinzentas, frequentemente a meio caminho entre o total desrespeito pela diferença e as melhores intenções de elevação da humanidade. Os próprios nazistas viam a si mesmos desta última maneira, e suas ficções (algumas das quais produzidas com maestria) os representavam precisamente assim.

Entender as zonas cinzas é o primeiro passo, mas há um segundo, ainda mais difícil: buscar mapear o terreno pantanoso dos valores que animam esse outro inaceitável — o fascista — antes de nos deixarmos nausear, antes que nossa repugnância nos turve a vista e o intelecto, antes que nossos juízos de valor afastem para além de qualquer compreensão o fato de que tantos homens e mulheres tenham sucumbido a promessas genocidas, acreditando com isso purificar o mundo. Se conseguirmos essa proeza do discernimento nesse caso extremo, o nazismo, estaremos escolados para casos menos graves, mas que, 75 anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial, nos causam repulsa semelhante, guardadas as proporções. Veja, então: não se trata de relativizar os males do nazismo, como diriam alguns de estômago mais sensível, mas de um exercício de compreensão, para nos prepararmos para resistir ao fascismo sem fazer dele uma caricatura.

Agora, ao Brasil dos anos 2020. Não estamos, ainda, diante do fascismo. Mas seria autoengano julgar que desse mato não sai um Mussolini, e que do matagal não sairão camisas negras. Hoje podemos rir à vontade do Duce, ou do Führer — desde que saibamos levar a sério as situações sérias; e isso implica não cair no engano de que apenas a estupidez ou a pura maldade podem produzir isso que nos toca como monstruosidades. E o que vale para o passado vale ainda mais para o presente: rir de Bolsonaro ou Trump é um alívio, mas é também escapismo. Tratá-los como caricaturas antes de saber de onde eles vêm, e quais valores profundos eles representam, é erro de principiante; enquanto surramos espantalhos, baixamos a guarda para golpes reais, que virão!

Daí porque o excelente Jojo Rabbit não nos serve. Ele é de um escapismo estranho, tenso, novo, que vale a pena ver, mas ainda assim escapismo. E, sim, ele é um manifesto contra a guerra — e precisamos lutar contra a guerra e sua moral da violência. Mas não é fugindo dela que a venceremos. Não foi fazendo de conta que os adversários eram parvos, inaptos ou ignorantes que as melhores ações da resistência tiveram êxito. Foi preciso compreender sua estratégia, entender as causas de suas vitórias, conhecer o inimigo.

Somos feitos também de nossas ficções — e fazemos mal quando tentamos separá-las de nossa realidade, assim como quando tentamos separar nossos valores da verdade que vemos através deles. É esse o tipo de animal que somos. Pode, um dia, haver outros tipos, que vejam o mundo em suas cores reais e não estejam condenados, como nós, a enfeitá-lo com as paletas que nos foram dadas. Mas eis o subjetivismo a que estamos presos: nossa verdade é o reflexo do que somos. Agora, precisamos cuidar de nos elevar, para desse modo criar um mundo mais elevado, a despeito daqueles que querem rebaixá-lo.

cartas na mesa_site_figas

Ouça a rádio FIGAS

Ouça abaixo a estreia de Cartas na Mesa, o podcast em que os colaboradores da revista FIGAS discutem os temas do noticiário político.

No episódio de estreia do podcast de política da revista FIGAS, Richard Sanches, Laércio Pires e Giovanni Rossi discutem a prisão do Queiroz e seus desdobramentos, o futuro do bolsonarismo, suas semelhanças históricas com o trumpismo e muito mais.

Ouça no Spotify!

ilustra_v2

A última bolacha do pacote

Existe um momento que costuma anteceder imediatamente os confrontos – sejam estes brigas de rua, contendas entre torcidas organizadas, conflitos de policiais com manifestantes ou mesmo batalhas em uma guerra. Nesse instante pré-pugilato, cada grupo volta o olhar para seu respectivo lado e calcula com quem pode contar para ganhar o duelo. Às vezes é uma questão de segundos para reunir coragem e ir pra cima de quem pode estar em maior número, ou mais bem preparado – isso quando a escassez de apoio não faz minguar a confiança. Em outras ocasiões, o pistoleiro nem sequer levanta as armas. Em outras, ainda, dá boiadas para não entrar na briga, e sai dizendo aos quatro ventos que “isso não vale a pena”.

De todo modo, é nesse momento pré-contenda que todos fazem cálculos. E na política não é diferente: no front do legislativo, o núcleo duro do governo calcula quantos votos precisa negociar com o centrão para evitar a deposição no curto prazo; o centrão, por sua vez, calcula quanto vale a desidratação do bolsonarismo; já a oposição vai angariando insatisfeitos em seu cálculo de multiplicar as massas.

Outra conta perversa que com frequência se impõe é a da pandemia: a contagem de corpos, pesadelo de todos. Daqueles que aceitam conviver com a morbidez e põem os números na ginástica para se enxergar os resultados de uma panaceia qualquer. Mas também daqueles que aceitaram a realidade – dessa vez implacável como poucas vezes se viu na história – e agora olham para o lado do ordenamento social enquanto tomam fôlego para encampar essa batalha.

Entre o cálculo político e o da contagem dos corpos se situa um grupo que, desde antes da eleição de 2018, tem capitaneado um discurso de reforma do Estado, plataforma central do governo, e que, agora, tem assistido com pesar o espancamento frequente de seus interesses pelas práticas (mundialmente adotadas) de combate à pandemia. São os autodesignados empresários. No Brasil, segundo pesquisa do Global Entrepreneurship Monitor (GEM) de 2020, eles são, ou eram, quase 50 milhões de pessoas – cerca de um quarto da população do país e 38% da população economicamente ativa.

O crescimento de seu quadro associativo, ou, como dizem os especialistas, seu membership growth (o aumento do número de pessoas que se declaram nessa categoria), nos últimos quinze anos tornou-os um importante incremento do cálculo político no país. Essa expansão se deu, num primeiro momento, pela melhora nas condições econômicas no país e, em anos recentes, pela queda na oferta de vagas formais no mercado de trabalho.

Com ressalvas feitas ao “como”, o “o que” de Guedes era um símile do que constava na maioria dos programas de candidatos postulantes à cadeira hoje ocupada por Bolsonaro. De lá pra cá, muita coisa mudou

No caldeirão do empreendedorismo se cozinham subgrupos bem heterogêneos, que vão de uma massa – mais de 70%, segundo pesquisa do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) – com rendimentos de menos de três salários mínimos até bilionários. Entre eles, no entanto, há muitos interesses em comum. A desoneração fiscal é o mais imediato, mas o desregramento trabalhista também é causa partilhada. Essa agenda, quando conjugada ao crescimento do quadro associativo desse grupo, é material vasto para explicar os holofotes liberais que o nome Paulo Guedes atraiu para o governo ainda na época da eleição – e por que, até hoje, em meio a uma crise sem precedentes, sua posição seja observada com imensurável atenção.

Já o que causa espanto é o que vem sendo propagado pelo mentor econômico do governo – sob aplausos de seus eleitores mais fiéis. Guedes, já durante a eleição, trazia ao palco, diante de uma plateia amuada pela crise persistente, suas visões sobre os caminhos para o desenvolvimento nacional. Havia ali um diagnóstico bem lúcido sobre a situação da economia brasileira, calcado na necessária reforma tributária e na descentralização da atuação do Estado como agente econômico. Com ressalvas feitas ao “como”, o “o que” de Guedes era um símile do que constava na maioria dos programas de candidatos postulantes à cadeira hoje ocupada por Bolsonaro. De lá pra cá, muita coisa mudou, e mudou muito – grifo duplo no muito.

As ressalvas do “como” se multiplicaram antes mesmo da eclosão da covid-19 em Wuhan. O país recebia resultados pífios no mercado de trabalho e encerrava 2019 com prognósticos nada otimistas para o tecido econômico: 11,6% de desemprego (IBGE, dez. 2019), com viés de aumento, e ainda nos mesmos patamares históricos que levaram Guedes e seu chefe ao governo. A revisão do método era necessária para qualquer chicago-boy-estagiário no Ministério da Economia: Bolsonaro foi eleito com a agenda de reformas de Guedes, que não se concretizou plenamente em grande medida pelo circo permanente do Planalto, a despeito dos níveis elevados de boa vontade do invisível mas sempre onipresente mercado.

Guedes – ao menos publicamente – não só deixou de aventar a inevitável mudança de estratégia, como continuou a repetir que a economia vinha muito bem antes da crise alavancada pela covid-19. Mesmo depois de ver seu chefe levar um humorista ao conhecido cercadinho do Planalto para comentar o desanimador resultado do PIB – um dos crescimentos mais baixos entre as principais economias do mundo –, não revelou uma mudança de estratégia.

Mas voltemos à fonte do espanto partilhado por parte dos brasileiros atentos aos ditames econômicos do bolsonarismo. Desde a divulgação do PIB, o mundo presenciou um acontecimento que, para vários pensadores indiscutivelmente relevantes, certamente terá impacto nas estruturas sociais de todo o globo. Ainda é difícil tentar mensurar a magnitude desse impacto, mas não é difícil afirmar que muita coisa vai mudar. O que não mudou até agora, para o espanto de alguns e o fastio de outros, foi o diagnóstico de Guedes a respeito dos desafios que o Brasil deve enfrentar no futuro imediato; destarte, sua estratégia segue inexorável.

Mas, se por um lado existe muita gente espantada com a reação de Guedes, por outro há quem ainda aguarde ansiosamente a agenda que o superministro superliberal embrulhou para presente em outubro de 2018. Como mostrou o Datafolha em pesquisa de avaliação do governo publicada no fim de maio, os empresários são o grupo com maior aderência ao bolsonarismo. Essa tão ilustre malta tem ancorado suas esperanças de um futuro melhor na figura de Guedes e, como o próprio disse na fatídica reunião ministerial de palavrório questionável, mantém sua atenção voltada prioritariamente para o endividamento do Estado. Em poucas palavras, a grande luta desse mandato pode ser resumida, em última instância, à manutenção desse indicador.

A fala do ministro é mais uma explicitação da disputa de facções antagônicas na política brasileira, os trabalhistas e a elite conservadora, que agora se escancara durante a pandemia. A busca pelo balanço das contas públicas é outra face da discussão entre o afrouxamento no isolamento social. A realidade implacável do vírus não tem lado nessa briga, e seu impacto nas contas públicas é inevitável – um consenso entre os economistas.

Consoante a essa visão, fora do país a leitura da crise promove estratégias alinhadas de enfrentamento da pandemia e de seus impactos. Na Europa, praticamente todos aceitaram a realidade imposta pela contaminação, e a discussão sobre como os países vão lidar com esses problemas – a extensão dos auxílios emergenciais, os termos dos acordos de lay off, o relaxamento das políticas de mitigação do vírus. Mas a hesitação do Brasil em seguir um consenso tão amplo pode custar caro.

Ainda é cedo para tirar grandes conclusões a respeito do impacto, nos investidores internacionais, da errática condução brasileira da crise pandêmica (o pior resultado da série histórica pode ser apenas expressão de um mau humor generalizado), mas já é hora de questionar por que Guedes ainda é visto como a última bolacha do pacote bolsonarista. As contas de como a disputa política vai se dar nos próximos meses – e de como ela vai definir o destino do mandato de Bolsonaro – estão sendo feitas e, para todos os cenários, é necessário que aqueles que lideram as proposições consigam pintar um futuro no qual os empresários ganhem. Com uma coesão aparentemente mais forte nesse grupo de eleitores (em oposição aos assalariados), não haverá adesão a um plano para o Brasil se não houver boa solução para eles.

A desconcertante situação econômica, social e política atual, tanto para a massa trabalhadora quanto para o empresariado, deve ser o ponto de partida para a construção de propostas de futuro. E a urgência do combate à pandemia acelera esse processo. Mas o que todos aguardam é uma proposta de repactuação entre esses dois grupos que, quando andavam juntos e não xingavam a mãe do outro, promoveram as grandes transformações da sociedade brasileira.

fiction_ok

Entre o faz de conta e a realidade

Existe um mistério cotidiano que me intriga já há algum tempo. Que o leitor diga se não é mesmo intrigante: onde há homens, há contação de histórias. Não poucas histórias, e não há pouco tempo. Pequenos sumérios eram embalados, há quase quatro mil anos, pelas histórias de Gilgamesh e sua busca pela glória imortal; na mesma época, egípcios ouviam, maravilhados, histórias como a do “Camponês Eloquente” e sua busca por justiça; mais tarde, há três mil anos, rapsodos viajavam pelas cidades jônicas, dóricas, eólicas e da Magna Grécia, contando eventos mágicos e bélicos que em breve se tornariam Ilíada e Odisseia; por volta desse mesmo tempo, os hebreus atribuíam a Moisés seus mitos de origem; os indianos contam e recontam há milênios os seus purana; há dezenas de séculos os chineses repetem suas anedotas, como as reunidas nos Shishuo xinyu. Toda mitologia e todo folclore se assenta sobre narrativas — que contam e recortam a realidade, sem se confundir com ela. Por que tão presentes essas formas de ficção? De que elas nos servem, de que elas têm nos servido nesse processo milenar — que segue, ininterrupto, desde os testes bíblicos, epopeicos, imemoriais, até os tempos de iPhone, Bolsonaro, covid-19 e Trump?

Poucas coisas são tão nossas, tão humanas, quanto nossa capacidade e ímpeto de criar histórias. Entregamo-nos com prazer e serena obsessão a elas; na ficção estamos em nosso elemento. Nada mais natural, portanto, que nos deixemos levar por essas invenções do espírito — o diabo, e quem nele crê, as chama de mentiras — e deixemos de lado a incômoda, desleal, fatal realidade. Por que a realidade, quando o mundo paralelo com que lhe podemos recobrir nos é tão mais grato? E como esta última pergunta não é meramente retórica, convém lhe dar uma tentativa de resposta: Talvez por uma exigência evolutiva. A realidade está sempre à espreita, esperando, a malvada, que baixemos nossa guarda; e quem se entrega a ilusões estará menos preparado para enfrentá-la quando vem o seu bote.

A ficção nos obseda com feitiços, nos tira o juízo, nos engana — e não contra nossa vontade, que fique claro

Entretanto, entregamo-nos aos prazeres da ilusão; alguns se nutrem de sua gorda ração diária de faz de conta diante da TV; outros, mais frugais, diante de densas páginas impressas; houve tempos em que ouvíamos histórias em volta de fogueiras; já existiu uma era do rádio; consta que antes da quarentena pessoas se reuniam e se sentavam nas confortáveis poltronas de amplas salas para ouvir mentiras projetadas ou encenadas à sua frente. Mas, ao fim, essas formas de fruição se assemelham no seguinte ponto: ao fruir, somos todos cúmplices desse crime contra a evolução (supondo correta nossa hipótese), quando deliberadamente damos as costas à verdade — ela nos cansa e enfastia! — e imergimos na fantasia, que tem como único fim simular outros mundos, qualquer outro mundo que não o real.

Lancei, acima, a palavra “encanto” — pois me parece ser justamente esse o efeito da ficção sobre nós. Ela nos obseda com feitiços, nos tira o juízo, nos engana — e não contra nossa vontade, que fique claro. Quando corremos às salas de cinema e teatro, às prateleiras das seções de ficção, ao Netflix, AmazonPrime, AppleTV e PopcornTime corremos voluntariamente a encantadores que nos inebriarão com as doces poções da mentira e do engano. Eis o mistério, que, de tão batido, mal chega a ser formulado.

Permita-me agora, leitor, que eu volte ao único tema que deveria nos ocupar nestas conversas periódicas: qual o valor da ficção para nós, obcecados por essas belas mentiras que têm entrada franqueada em todos os lares do mundo há não sei quantos milênios, ainda que todas as morais façam da proibição da mentira sua lição primeira? Apresento, em resposta, uma mera perspectiva, uma só peça do quebra-cabeça. Por que a ficção? Porque são as nossas ficções que determinam os contornos do nosso mundo. Por meio de nossas “ficções norteadoras” damos forma e imagem aos nossos valores, representamo-los, visualizamo-los, para que eles estejam integrados em nossas vidas e incorporados à nossa carne, para bem usá-los nos momentos em que formos chamados a usá-los.

Mas eis um tema em que ainda insistirei muito nesta modesta coluna: os valores não se equivalem, alguns valem mais que outros. O valor dos valores! Problema difícil. Volto à ficção para efeitos de comparação. O leitor consciencioso, se vasculhar seu rico repertório de ficções, irá facilmente concordar que certos contos são melhores que outros, que algumas histórias, imagens, montagens valem mais do que outras. Há, é claro, aqueles que dizem, sem medo da punição divina, “Eu sei o que vocês fizeram no verão passado é tão bom quanto O iluminado, e Romero Brito vale tanto quanto Portinari; é uma questão de gosto”. Mas nem mesmo esse relativismo pueril consegue disfarçar o fato de que nós naturalmente hierarquizamos o que nos cai sobre o colo, fazemos juízos de valor, escolhemos algumas coisas em detrimento de outras, e de preferência as melhores. Para cada um há o melhor e o pior, e isso é determinado por nossos valores. Mas, para além disso — e agora confesso esperar menos assentimento do generoso leitor —, há um critério para julgar esses critérios, há um modo de dizer qual o valor dos valores que usamos para distinguir o melhor e o pior. Outra vez, a ficção nos ajuda: Algumas delas nos tornam mais afiados para ver a realidade, mais atentos, perspicazes, escolados nas coisas da realidade; e, se temos a rara sorte de encontrar uma obra de arte digna desse nome, veremos que, além de potentes, elas são belas — ficções que, enquanto cultivam nossos sentidos para a realidade, ainda por cima tornam bela a realidade. (E percebam: o que digo a respeito da ficção, eu poderia dizer a respeito de valores; mas deixo para outra ocasião a reflexão sobre essa assombrosa semelhança.) Há, por outro lado, ficções que embotam nossos sentidos, seja porque elas nos tornam alheios à realidade (e isso não é nenhuma defesa do “realismo”!), seja porque fazem ver menos claramente o mundo da vida.

Essas considerações são programáticas, metodológicas. Com elas no bolso, poderemos olhar para uma ou outra peça de ficção e julgá-la a partir de um critério mais objetivo que o gosto, o nosso prazer pessoal ou a capacidade que ele tem de nos entreter. Procure-me de novo em uma semana, leitor, e então poderemos, juntos, aplicar esse “método axiológico” e colocá-lo à prova.

alo_ok

“Alô, Jorge Mautner?”

Publicado originalmente na edição #1 da revista FIGAS, em agosto de 2009.

São Paulo, véspera do feriado constitucionalista. Entrevista mais ou menos confirmada. Encontro em Guarulhos, cinco horas da manhã, para seguir viagem até o Rio de Janeiro em busca de Jorge Mautner. Vamos lá. Cinco no Fiat Uno, todo mundo apertadinho, trânsito superlento por causa de dois acidentes na pista. Resultado: chegamos à avenida Brasil carioca às 13h. Porém, uma vez no Rio em um dia ensolarado, e digo isso sem medo nenhum de cair no clichê, estávamos todos felizes.

O apartamento em que nos hospedamos fica no bairro do Catete, pertinho da praia do Flamengo. Durante o feriado, circulamos entre o Centro e a Zona Sul, onde se concentram as atrações turísticas e grande parte da renda da cidade. Difícil era não se lembrar das novelas do Manuel Carlos quando nos deparávamos com velhinhos da vizinhança (nem sempre amigáveis), a galera jogando futevôlei na praia, os porteiros boa-praça. Os prédios de baixa estatura se sustentam sobre o solo arenoso e por isso ficam bem colados uns nos outros. E o bairro do Catete conserva em seus fragmentos de um outro tempo aquele ar de um Rio de Janeiro que já passou. Inspirado por essa atmosfera, Richard, nosso editor, decide procurar um barbeiro que aparasse sua barba à navalha. Batendo aqui e ali, afinal encontramos uma cabeleireira do bairro . “Peraí. Vou levar vocês numa pessoa que faz”, disse, em tom quase maternal, se não fosse um pouco aborrecido. A passos largos, nos levou pela mão até uma pequena e genuína barbearia no mesmo quarteirão e logo desapareceu. Nem deu tempo de agradecer. A forma com que nos ajudou aquela senhora, expressando bem marca que folcloricamente distingue os cariocas dos paulistas – a capacidade de rapidamente criar uma espécie de familiaridade cúmplice, e que os mais mal-humorados chamariam de petulância e “folga” –, nos fez batizar esse evento, de brincadeira, como “a primeira estripulia carioca” da viagem.

Leio um livro de entrevistas de Mautner e assisto ao Pica-pau na TV enquanto o barbeiro cuida minuciosamente da barba um tanto selvagem do meu amigo. Distraidamente aceito o café já adoçado, que um moço, tentando me agradar, ofereceu. Tinha me esquecido que os cariocas são chegados a um café “bem docinho”. Tomei o café até o fim e o Richard foi ficando mais bonito e satisfeito com o resultado. Nossa intensão era fazer a nossa própria entrevista com Mautner naquele mesmo dia, mas estávamos todos ainda meio zonzos com a viagem de carro. Então recapitulamos as pautas, lemos em voz alta alguns trechos de outras entrevistas dele e de seus textos literários. Tudo nos instigava muito.

Vanessa Nicolav, nossa editora de vídeo, e Leandro Melito, nosso repórter, ao ar livre na Cidade Maravilhosa

 

Esperamos até meia hora antes do horário combinado para o encontro (calculamos com precisão esse intervalo, por medo de ser inconvenientes demais) antes de ligar para o entrevistado e combinar o lugar – até então, uma incógnita. No fundo já esperávamos o que viria: por telefone, ele nos disse estar cansado, depois de um dia inteiro de ensaio. A entrevista ficaria para o dia seguinte. Pelo menos agora tínhamos uma informação adicional: o encontro seria na casa dele. Não poderíamos mais fotografá-lo no teatro vazio, como o Leo já tinha planejado. “Quem sabe sentado na poltrona favorita dele… sei lá…” À noite, sem Mautner, fomos para a Lapa – segundo o guia turístico, a Montmartre carioca. Muita gente circulando, considerando que era uma quinta-feira. O que é mais notável na Lapa é sua vocação para a música. De qualquer lugar pode-se ver a pintura lateral do prédio da Escola de Música da UFRJ. Portentosa, a sala Cecília Meireles, a única reservada à música de câmara no Rio, divide o largo da Lapa com as rodas de samba, forró, choro, música eletrônica, rock – para ficar só nos mais evidentes.

Depois de uma cerveja com aipim frito, nos animamos para entrar no Cine Lapa, onde o rapper Emicida faria um show. Durou pouco: alguns de nós foram barrados porque não estavam com o RG. Passada a negociação frustrada com o segurança, mais um fracasso: nenhum motorista de táxi aceitou levar cinco no carro, por medo de multa. Lei, 2; FIGAS, 0. Fomos, então, esperar por uma van em uma esquina que achávamos ser um ponto. Chegou uma, toda branca – sem nenhuma marca de empresa ou regulamentação do transporte – indo para São Conrado. Não tinha lugar para mais cinco sentarem. “Nossa, mas é assim? Pode ir de pé?”, um de nós, mais fresco, perguntou. Ao que o homem gordo que espremia o Leo, único de nós que se sentou, respondeu “pode ir no teto, de lado, no colo… na van pode tudo!”. Todo mundo na van, e a maioria devia estar voltando de um dia de trabalho, ficou dando risada e fazendo outras piadas até chegarmos à nossa parada, no Catete, depois de dez minutos. Cada passagem, junto com as estripulias, nos custaram dois reais; mais barato e bem mais divertido do que a viagem de ônibus.

Na areia, garotos e garotas congestionavam a beira d’água em pequenas rodinhas. Ambulantes vendendo desde “mate de limão geladão” até biquínis tomara-que-caia – sensação do inverno carioca

Dia seguinte, paulistanos acordam loucos por uma praia. Todos no Uno, rumo a Ipanema. Grande erro. Depois de uma hora procurando desesperadamente um lugar para estacionar antes que o sol se fosse, o jeito foi usar um estacionamento, regiamente pago. Finalmente tirando chinelinhos e pisando na areia fofa do Posto 10. Delícia. De longe se podiam ver as várias bolas de futvolei no ar, futvolando de um lado para o outro. Na areia, garotos e garotas congestionavam a beira d’água em pequenas rodinhas. Ambulantes vendendo desde “mate de limão geladão” até biquínis tomara-que-caia – sensação do inverno carioca –, passando por amendoim, brinquinho, queijo, canga e toda a parafernália praieira. Atentos ao horário – e uma boa parte do tempo de maré havia sido comida por nosso passeio de carro – disciplinadamente, saímos da praia às 16h30. A reunião com Mautner seria às 19h, no Leblon.

Quando chegamos ao apartamento do Catete, descobrimos que nosso entrevistado havia telefonado, em vão, quatro vezes. Ligamos de volta e ele parecia bem agoniado ao dizer que, mais uma vez, teríamos de adiar a entrevista. Poderia parecer que ele estava nos enrolando, mas, ao contrário, percebemos que ele queria que nosso encontro não ficasse espremido entre seus inúmeros compromissos, para que tivéssemos mais tempo. E foi assim que a entrevista ficou para as 16h do sábado, na casa dele. Sem Mautner, pela segunda vez. Que remédio? De banho tomado, mais uma vez caímos na noite carioca. Um amigo que mora lá havia recomendado um bar, que funciona também como loja de discos de vinil, sempre na Lapa. Ali haveria uma apresentação de música eletroacústica. Antes de chegar ao bar, Vanessa, nossa editora de vídeo, me explicou que era um tipo de música que “se aproxima muito do barulho”.

Nosso editor, Richard Sanches, e eu, Yasmin, em roda de bar no Rio

 

A pequena loja, à meia-luz, estava cheia de discos e de pessoas – homens em sua maioria, cada um segurando sua lata de cerveja – atentas ao artista, sentado de pernas dobradas no tapete diante de algumas maquininhas parecidas com sintetizadores, de onde saía todo o som da apresentação. Como alguém que não conhece música atonal, digo que achei a música curiosa. Identifiquei alguma coerência nas frases, elas tinham suas tensões. Finda a apresentação, nos despedimos do amigo carioca informando que iríamos a uma balada de hip hop, onde o Emicida se apresentaria, em Copacabana (desta vez, todos com RG em mãos). Nosso amigo do Rio não poderia nos acompanhar porque tinha de trabalhar: ele promovia festas noite afora. Mas não deixou de entortar a cara, dizendo que não gostava do público fã de rap: “Lá em São Paulo rap é hype, né? Aqui não”.

O bar Clandestino parecia a nós uma boa pedida. O DJ residente de sexta-feira é quem disponibiliza discos de hip hop – que muitas vezes ouvimos repetidamente – para serem baixados em um blog chamado Só Pedrada. Além disso, tínhamos visto no jornal que o Emicida faria ali um pocket show; o Rio nos dava uma segunda chance para que víssemos o rapper no palco. A balada era como qualquer outra da Vila Olímpia, em São Paulo, no que se refere aos preços das bebidas, e ao repertório do DJ, bastante comercial. O jeito era esperarmos pela apresentação do Emicida.

Enquanto tentávamos nos esconder do segurança, que já não aguentava mais pedir para as pessoas da pista apagarem os cigarros, a global Cléo Pires (a Surya da novela Caminho das Índias) se acabava de dançar perto da cabine do DJ, no centro da pista. Ao lado dela, um rapaz alto de camisa polo tentava, perseverante, ganhar a noite com a princesa indiana. Voyeures que somos, acompanhamos a empreitada do moço. Mais tarde, quando fui ao banheiro, perguntei a uma moça se ela tinha visto que a Cléo estava ali. Ela se dirigiu com desprezo e pena dizendo: “Você não é daqui não, né?”. Respondi que não, e ela emendou: “Olha, aqui no Rio a gente vê artista a toda hora. É na academia, é no calçadão, na boate… Então pega mal ficar comentando, entendeu? Você é uma pessoa melhor se você não fala disso”. A partir daí resolvi ignorar, à maneira carioca, a presença de celebrities na balada.

O show do Emicida foi ótimo. Ele vendia a sua mixtape, gravada e envelopada em uma capinha carimbada à mão, por dois reais – compramos as nossas, já que ainda não tínhamos. Era um material importante, porque queríamos entrevistá-lo para nossa edição seguinte. Uma mulher de uns 40 anos, que ficava dançando em volta do rapper, dando eventuais belisquinhos na barriga dele, ganhou homenagem no improviso: “A tiazona tá caindo em cima”. Mas nem a menção especial nem as risadas a inibiam.

Acordamos só meio-dia no sábado. Não só porque ficamos até tarde na rua, mas também porque ficamos presos para fora do apartamento de madrugada. Dois de nós voltaram um pouco mais cedo e logo mergulharam em um sono profundo. Não ouviram a campainha e os chamados – discretos para não acordar a vizinhança. Com medo de ter acontecido alguma coisa com os dois, chamamos o chaveiro, que cobrou um preço alto por ter sido tirado da cama na madrugada de domingo. Como recompensa pelo inconveniente, os dois providenciaram pão, patê, queijo e até vinagrete para o nosso brunch do dia seguinte. Naquele dia só tínhamos tempo para comer, tomar banho e reunir todas as coisas para a entrevista, às 16h; nada de conhecer o Pedregulho, conjunto habitacional na Gávea, projeto modernista da década de 1940, destinado a funcionários públicos. Muito menos ir à exposição das Vanguardas russas no CCBB, como havíamos planejando no início da viagem. Ficariam para a próxima, porque, concluída a entrevista a partir da qual redigiríamos o perfil de Mautner, era hora de partir. A rotina paulistana nos aguardava.

A equipe toda (da esquerda para a direita, Leo Eloy, Yasmin, Richard, Vanessa e Leandro), com Jorge Mautner ao centro, logo após a entrevista

mautner

Nossa amálgama

Publicado originalmente na edição #1 da revista FIGAS, em agosto de 2009.

Com a perna engessada e apoiado numa bengala, Jorge Mautner surgia com um largo sorriso na portaria do prédio em que vive, no bairro do Leblon, para nos receber. Era sábado, nosso terceiro dia de visita ao Rio de Janeiro, e a entrevista, que havíamos marcado e remarcado tantas vezes, parecia que finalmente se concretizaria. O sentimento de triunfo, após tantas idas e vindas, era tamanho que o fato de nosso entrevistado ter esquecido a chave no apartamento e ter sido obrigado a refazer o percurso de ida e volta, mancando pelas escadas, pareceu um contratempo menor.

A sala arejada do apartamento de Mautner estava repleta de livros. Livros espalhados pela mesa de centro, nos sofás, dividindo o espaço com os retratos na prateleira. Nas paredes, fotografias em preto e branco disputavam espaço com ilustrações do Rio de Janeiro colonial. Um computador ligado, no canto do cômodo, mostrava que Mautner estava trabalhando. Assim que entramos e nos assentamos, Jorge desligou o computador e nos perguntou: “Vocês acham interessante eu criar um blog?”. Após a resposta positiva, teve início a entrevista.

Jorge nasceu Henrique George Mautner, filho de Anna Illichi, de origem iugoslava e católica, e Paul Mautner, judeu e austríaco. “Eu nasci aqui um mês depois de meus pais chegarem ao Brasil fugindo do Holocausto”, nos contou ele enquanto se sentava numa poltrona sob a janela com vistas para o jardim. No Brasil, seu pai, mesmo tendo flertado com o governo de Getúlio, continuou atuando junto à resistência judaica. Sua mãe passou a sofrer de paralisia após o trauma decorrente da impossibilidade de a irmã de Jorge ter embarcado para o Brasil com a família. Assim, até os sete anos, ele ficou sob os cuidados de Lúcia, sua babá, que era Ialorixá e foi responsável por apresentá-lo aos batuques do candomblé.

Em 1962, Jorge Mautner teve publicado seu primeiro livro, Deus da chuva e da morte, o qual começara a escrever em 1956, aos quinze anos. O livro, que carregávamos para cima e para baixo durante a viagem ao Rio, foi o primeiro volume da trilogia hoje conhecida como Mitologia do Kaos, seguido por Kaos e Narciso em tarde cinza, publicados em 1964 e 1966, respectivamente.

No pós-guerra, as literaturas europeia e norte-americana estavam impregnadas pela crise espiritual de sua juventude, e certas correntes culturais, como o pensamento existencialista de Sartre e o zen-budismo, vieram em seu auxílio

“Ouvir rock, ver a chuva, beijar uns lábios, deitar com uma ou outra carne na cama e sentir o sexo.” Permeada pelo lema juvenil da época, sexo e rock ’n’ roll, a obra trazia os primeiros apontamentos filosóficos do jovem Mautner. No pós-guerra, as literaturas europeia e norte-americana estavam impregnadas pela crise espiritual de sua juventude, e certas correntes culturais, como o pensamento existencialista de Sartre e o zen-budismo, vieram em seu auxílio. É nesse contexto que surge a literatura de Mautner, como já foi constatado pelo crítico Mario Schenberg, para quem a trilogia do Kaos surgiu como um esboço da crença de que as bases do futuro da humanidade estariam na América Latina, na África, na Ásia e na Oceania. Jorge Mautner criou o Kaos – “Kaos com k”, como ele faz questão de frisar.

Na autobiografia Verdade tropical, Caetano Veloso diz que as conversas que tinha com Mautner quando moravam em Londres foram determinantes para os tropicalistas consolidarem sua oposição à esquerda nacionalista dominante na MPB. Se por um lado o movimento ambicionava a experimentação estética, por outro desejava chegar ao nível de difusão e técnica das produções norte-americanas e inglesas, e Mautner exacerbava essa oscilação. Quando ele passou a frequentar o número 16 da rua Redesdale (endereço onde viveram Gil e Caetano no distrito de Chelsea, em Londres), chegou a formar um grupo de estudos – uma “célula gramsciniana, mas brasileira”, como nos contou – em que ele, os tropicalistas e vários outros brasileiros exilados na capital inglesa se dedicavam à discussão de textos filosóficos. Assim surgia, em 1969, um primeiro esboço do projeto Figa Brasil.

Publicado no Jornal da Tarde em 1987, o texto-manifesto “Um caráter para Macunaíma” seria o responsável por dar forma ao movimento. E foi justamente esse texto, que havia surgido para nós quase por acaso no final de 2008, o motivo que havia nos levado até o Rio. Aquelas palavras se afinavam com as intenções do nosso grupo de maneira singular e resultaram numa empatia imediata. Ao propor uma discussão ampla sobre a cultura brasileira, Jorge Mautner convidava as pessoas a se reunirem para refletir e dialogar. E anunciava: “Está na hora do Macunaíma elaborar seu caráter”, o que implicaria reconhecer a presença da pluralidade cultural do Brasil em cada um de nós, de utilizá-la de maneira que contribuísse com toda a sociedade, e não apenas em benefício próprio. “Figa Brasil é o desejo de uma alquimia que faça encontrar os que estão separados. Que faça sambar os que só escrevem, que faça escrever os que só têm sambado!”, proclamava o manifesto.

O projeto ganhou expressão com o show O poeta e o esfomeado. “Eu brincava que o Gil era o poeta e eu era o esfomeado”, nos contou Mautner naquela tarde de sábado, em meio a gargalhadas e expressões de máxima seriedade. Após o show, os músicos convidavam o público a fazer parte do movimento. Mais de 7 mil pessoas se inscreveram, mas o projeto acabou não decolando da maneira prevista, pois Gilberto Gil foi eleito vereador em Salvador em 1988. Jorge ocupou o cargo de chefe de gabinete, ou de “antichefe do antigabinete”, em suas próprias palavras. “Mesmo assim, através de cartas – veja só, de cartas! –, mantivemos contato com os inscritos por algum tempo. Foi uma pena, mas o Gil teve que se distanciar por causa da candidatura. Mas pra mim ele realizou o Figa Brasil quando foi Ministro da Cultura”, explicou. Os princípios desenvolvidos em parceria com Gil – um dos amigos cujo retrato figura em sua estante de livros – deram vazão não só a obras artísticas, mas também tiveram continuidade como embasamento das plataformas do ex-ministro.

A amálgama tem uma qualidade flutuante segundo a qual cada geração de brasileiros e brasileiras tem o dom de reinterpretar tudo num segundo, incluindo pareceres contrários, achando o caminho do meio

O Figa Brasil corroborava uma ideia de cultura brasileira que é fundamentada pela noção de amálgama. Esse termo, que faz alusão ao processo de mistura de metais na formação de ligas, foi utilizado por José Bonifácio de Andrada e Silva para se referir à capacidade de, no Brasil, as diversas culturas terem gerado algo que ia além da miscigenação. “A ideia de ‘amálgama’ vem desde os discursos e sermões do padre Antônio Vieira, passa pelo Álvares de Azevedo, Castro Alves, continua com a antropofagia do Oswald de Andrade, que é a amálgama bem vociferante, com a Tropicália, e vem até os dias hoje. Isso se tornou nossa linguagem, tão complexa e tão incrível, de humanistas totais e sem diferenças apartheideanas”, definiu Jorge. “A amálgama tem uma qualidade flutuante segundo a qual cada geração de brasileiros e brasileiras tem o dom de reinterpretar tudo num segundo, incluindo pareceres contrários, achando o caminho do meio”, filosofou o artista. Essa ideia percorre toda a obra de Mautner e o e entusiasma até hoje. Sentado, mas sem parar de se mexer, ele passava rapidamente de um momento a outro da história, alternando o pensamento sem perder a linha de raciocínio, de quando em quando sorrindo e perguntando retoricamente, “Isso não é fantástico?”.

A amálgama começou no Brasil antes de nos tornarmos Brasil, antes mesmo das terras tropicais americanas serem encontradas pelos portugueses. Segundo Mautner, ela surgiu com os tupi: “Eles já haviam atravessado o Pacífico à procura da Terra sem Males. Vinham atrás de uma misteriosa palmeira azul. A ideia deles era a de que tudo é mistério, e o mistério os criou para que eles o desvendassem. Os tupis já chegavam ao território guerreando e se miscigenando. E os bantos, o primeiro grupo africano que chegou ao Brasil, se misturou logo com os índios e trouxe o zemba, que é o samba. Mas, antes disso, já havia aqui o samba original dos nossos índios, com chocalhos. O Brasil é forjado por esses chocalhos e pelos tambores. Essa é a visão da amálgama”, concluía Mautner com empolgação. Ainda segundo ele, mesmo os portugueses já teriam chegado aqui amalgamados:

Em Portugal, eles já tinham essa visão ecumênica, resultante da influência muçulmana e do fato de serem muito pequenininhos e quererem se separar [da Espanha]. Até mesmo as navegações só tiveram sucesso porque Portugal foi o único país que, em segredo, acolheu os Templários, que estavam sendo queimados como heréticos na frente da Igreja. Portugal os acolheu com um pequeno truque, que já é uma amálgama: mudou o nome deles para Cavaleiros de Cristo. Com a chegada dos Templários, os portugueses dão um salto, porque toda aquela sabedoria que eles tinham das culturas antigas da Grécia, da cabala judaica, da Babilônia, da China e da África passou para o espírito da Coroa portuguesa.

A formulação desenvolvida pelos jesuítas, de um novo ideal que representasse as terras americanas recém-descobertas, também teve grande importância na composição da amálgama. “Anchieta e Nóbrega chegam e inventam o Brasil já numa atitude linguística. Eles pegam o tupi-guarani e transformam, facilitam, e isso vira a língua geral inhangatu (mistura de tupi e português), que vai ser falada em São Paulo até 1930, quando 70% ou 60% da população falava só essa língua. E com isso eles criam o Brasil, pelo menos na imaginação poética, já com o ideal de que aqui teria que ser a resposta não só aos erros da Igreja Católica até então, mas tentando absorver algo de útil também do protestantismo”, explicava Mautner.

Essa ideia do Brasil como um lugar utópico, de esperança da humanidade, onde nasceria a “Coisa Nova”, referida por Jorge em sua trilogia do Kaos, está presente no pensamento de muitos poetas e filósofos, reunidos e citados por Mautner na música “Outros viram”, gravada por Gil. As referências vão do poeta norte-americano Walt Whitman (“No entanto, o vértice da humanidade será o Brasil”), passando pelos filósofos Rabindranath Tagore (“A civilização do amor nascerá no Brasil”) e Jacques Maritain (“O único lugar onde a justiça e a liberdade poderão aflorar juntas é o Brasil”).

Roosevelt quando chegou aqui caiu pra trás com a nossa amálgama! Comparando com o melting pot, ele ficou desesperado

Ainda nessa música, Mautner menciona o 26º presidente dos EUA, Theodore Roosevelt, o qual também sustentava um discurso racial assimilacionista, mas derivado da noção de melting pot.[1] Roosevelt, entretanto, vislumbrava uma mistura que se restringia aos judeus e àqueles de origem europeia: irlandeses, italianos etc. Em 1914, quando o ex-mandatário norte-americano veio ao Brasil, cinco anos após ter deixado o poder, Roquete Pinto e Marechal Rondon foram os responsáveis por apresentá-lo ao país. “Roosevelt quando chegou aqui caiu pra trás com a nossa amálgama! Comparando com o melting pot, ele ficou desesperado”, descreveu Mautner, para quem todo o continente americano tem potencial para a miscigenação, ainda que a amálgama de fato tenha aflorado apenas no Brasil. Para ilustrar, ele nos contou que alguns holandeses que faziam parte do grupo expulso do Nordeste brasileiro participaram da fundação de Nova York e levaram para lá características da nossa cultura. Isso explicaria a receptividade expressa em seu lema, “Bem-vindos todos que estejam aqui”. “Eles só não chegaram a fazer a amálgama, que é a grande dificuldade deles. Essa miscigenação que não se limita a misturar pai e mãe é coisa nossa. Aqui, antes mesmo de se misturarem sexualmente, um já incorpora a amálgama do outro, que flutuante vai aceitando… Esse modo de ser é o modo da descoberta do outro”, explicou.

Recentemente, Mautner publicou no jornal O Globo (de 26 de maio de 2009) o “Manifesto Amalgamista”, no qual ressalta as qualidades da mistura de culturas e traz a conclusão: “Somos todos mestiços, graças a Deus!”. Além disso, Mautner é curador de uma série de reportagens feitas para o Canal Brasil que ganhou o nome de Amálgama Brasil. Nessa série, o conceito desenvolvido por José Bonifácio é usado para dar visibilidade aos pontos de cultura espalhados pelo país. Jorge mostra que eles são parte de um projeto, iniciado pelo ministério de Gil, de valorização das expressões artísticas populares. Um lugar onde as pessoas se reúnem com a preocupação de difundir a cultura. “Eu e o Nelson Jacobina percorremos vários pontos de cultura e levamos também outros artistas já consagrados, famosos, como Caetano Veloso e Fernanda Torres, que apoiam esse projeto que em breve também produzirá seus artistas consagrados e famosos. Tem sido um trabalho de interação”, completa o autor da série.

Durante o primeiro mandato de Lula, em um carnaval em Salvador, o presidente e Gil estavam acompanhados por um casal branco muito sisudo, que parecia estar de cara feia o tempo todo. Eram o ministro da cultura da Ucrânia e sua esposa. “Eles, atônitos, se perguntavam, ‘Na Ucrânia nós investimos nos jovens e eles tristes, tristes; aqui, negrinho na bicicleta, assobiando sem dentes, todo feliz. Qual é o mistério?’”, contou Mautner, tentando imitar o sotaque ucraniano. Esse movimento de buscar na América, especificamente no Brasil, respostas para problemas sociais europeus mostra a atualidade de uma das velhas profecias mautnerianas: “Ou o mundo se brasilianiza ou vira nazista”.

Resgatar o humanismo brasileiro, que apazígua e possibilita a convivência de pessoas de origens culturais tão diferentes, e difundi-lo dentro e fora do Brasil é a missão de Jorge Mautner. Para ele, modelos europeus de cultura, tidos sempre como ideais a serem seguidos, mostram-se agora em franca decadência frente à vitalidade do Novo Mundo. Se boa parte da Europa hoje fortalece suas fronteiras e descrimina seus imigrantes, querendo responsabilizá-los por todo mal social do continente, do desemprego ao terrorismo, algumas nações do até então menosprezado terceiro mundo vão na contramão desse raciocínio. Recentemente, países latino-americanos, como o Brasil, a Bolívia e o Equador, se engajaram em oferecer cidadania plena aos imigrantes que têm recebido, regularizando seus documentos e oferecendo a possibilidade de eles elegerem seus próprios representantes nos parlamentos. As tensões, cada vez mais acirradas nas periferias europeias, se contrapõem às políticas de integração e distribuição de renda do hemisfério Sul. E a fama que a receptividade dá ao povo latino-americano se reflete na forma como se tem pensado os excluídos neste continente.

Depois de mais de duas horas de entrevista, Jorge não demonstrava ter perdido o entusiasmo do começo da tarde. Anoitecia e, depois da pujante exposição, já era hora de partirmos. Na saída, entre sorrisos e agradecimentos, ninguém escondia a felicidade. Nós, porque havíamos concluído nosso objetivo: falar com Mautner e esmiuçar os pormenores de seu manifesto. E Jorge, por ter comprovado que ideias sempre fazem eco.

 

Nota

[1] Do inglês, “caldeirão”, em referência ao “caldeirão” de raças que a América se tornou. [N. E.]