“Alô, Jorge Mautner?”
Um diário da viagem de nossa equipe ao Rio de Janeiro, em busca do homem que assinou o manifesto Figa Brasil Um diário da viagem de nossa equipe ao Rio de Janeiro, em busca do homem que assinou o manifesto Figa Brasil
fotografia de Leo Eloy
por Yasmin Afshar por Yasmin Afshar

Publicado originalmente na edição #1 da revista FIGAS, em agosto de 2009.

São Paulo, véspera do feriado constitucionalista. Entrevista mais ou menos confirmada. Encontro em Guarulhos, cinco horas da manhã, para seguir viagem até o Rio de Janeiro em busca de Jorge Mautner. Vamos lá. Cinco no Fiat Uno, todo mundo apertadinho, trânsito superlento por causa de dois acidentes na pista. Resultado: chegamos à avenida Brasil carioca às 13h. Porém, uma vez no Rio em um dia ensolarado, e digo isso sem medo nenhum de cair no clichê, estávamos todos felizes.

O apartamento em que nos hospedamos fica no bairro do Catete, pertinho da praia do Flamengo. Durante o feriado, circulamos entre o Centro e a Zona Sul, onde se concentram as atrações turísticas e grande parte da renda da cidade. Difícil era não se lembrar das novelas do Manuel Carlos quando nos deparávamos com velhinhos da vizinhança (nem sempre amigáveis), a galera jogando futevôlei na praia, os porteiros boa-praça. Os prédios de baixa estatura se sustentam sobre o solo arenoso e por isso ficam bem colados uns nos outros. E o bairro do Catete conserva em seus fragmentos de um outro tempo aquele ar de um Rio de Janeiro que já passou. Inspirado por essa atmosfera, Richard, nosso editor, decide procurar um barbeiro que aparasse sua barba à navalha. Batendo aqui e ali, afinal encontramos uma cabeleireira do bairro . “Peraí. Vou levar vocês numa pessoa que faz”, disse, em tom quase maternal, se não fosse um pouco aborrecido. A passos largos, nos levou pela mão até uma pequena e genuína barbearia no mesmo quarteirão e logo desapareceu. Nem deu tempo de agradecer. A forma com que nos ajudou aquela senhora, expressando bem marca que folcloricamente distingue os cariocas dos paulistas – a capacidade de rapidamente criar uma espécie de familiaridade cúmplice, e que os mais mal-humorados chamariam de petulância e “folga” –, nos fez batizar esse evento, de brincadeira, como “a primeira estripulia carioca” da viagem.

Leio um livro de entrevistas de Mautner e assisto ao Pica-pau na TV enquanto o barbeiro cuida minuciosamente da barba um tanto selvagem do meu amigo. Distraidamente aceito o café já adoçado, que um moço, tentando me agradar, ofereceu. Tinha me esquecido que os cariocas são chegados a um café “bem docinho”. Tomei o café até o fim e o Richard foi ficando mais bonito e satisfeito com o resultado. Nossa intensão era fazer a nossa própria entrevista com Mautner naquele mesmo dia, mas estávamos todos ainda meio zonzos com a viagem de carro. Então recapitulamos as pautas, lemos em voz alta alguns trechos de outras entrevistas dele e de seus textos literários. Tudo nos instigava muito.

Vanessa Nicolav, nossa editora de vídeo, e Leandro Melito, nosso repórter, ao ar livre na Cidade Maravilhosa

 

Esperamos até meia hora antes do horário combinado para o encontro (calculamos com precisão esse intervalo, por medo de ser inconvenientes demais) antes de ligar para o entrevistado e combinar o lugar – até então, uma incógnita. No fundo já esperávamos o que viria: por telefone, ele nos disse estar cansado, depois de um dia inteiro de ensaio. A entrevista ficaria para o dia seguinte. Pelo menos agora tínhamos uma informação adicional: o encontro seria na casa dele. Não poderíamos mais fotografá-lo no teatro vazio, como o Leo já tinha planejado. “Quem sabe sentado na poltrona favorita dele… sei lá…” À noite, sem Mautner, fomos para a Lapa – segundo o guia turístico, a Montmartre carioca. Muita gente circulando, considerando que era uma quinta-feira. O que é mais notável na Lapa é sua vocação para a música. De qualquer lugar pode-se ver a pintura lateral do prédio da Escola de Música da UFRJ. Portentosa, a sala Cecília Meireles, a única reservada à música de câmara no Rio, divide o largo da Lapa com as rodas de samba, forró, choro, música eletrônica, rock – para ficar só nos mais evidentes.

Depois de uma cerveja com aipim frito, nos animamos para entrar no Cine Lapa, onde o rapper Emicida faria um show. Durou pouco: alguns de nós foram barrados porque não estavam com o RG. Passada a negociação frustrada com o segurança, mais um fracasso: nenhum motorista de táxi aceitou levar cinco no carro, por medo de multa. Lei, 2; FIGAS, 0. Fomos, então, esperar por uma van em uma esquina que achávamos ser um ponto. Chegou uma, toda branca – sem nenhuma marca de empresa ou regulamentação do transporte – indo para São Conrado. Não tinha lugar para mais cinco sentarem. “Nossa, mas é assim? Pode ir de pé?”, um de nós, mais fresco, perguntou. Ao que o homem gordo que espremia o Leo, único de nós que se sentou, respondeu “pode ir no teto, de lado, no colo… na van pode tudo!”. Todo mundo na van, e a maioria devia estar voltando de um dia de trabalho, ficou dando risada e fazendo outras piadas até chegarmos à nossa parada, no Catete, depois de dez minutos. Cada passagem, junto com as estripulias, nos custaram dois reais; mais barato e bem mais divertido do que a viagem de ônibus.

Na areia, garotos e garotas congestionavam a beira d’água em pequenas rodinhas. Ambulantes vendendo desde “mate de limão geladão” até biquínis tomara-que-caia – sensação do inverno carioca

Dia seguinte, paulistanos acordam loucos por uma praia. Todos no Uno, rumo a Ipanema. Grande erro. Depois de uma hora procurando desesperadamente um lugar para estacionar antes que o sol se fosse, o jeito foi usar um estacionamento, regiamente pago. Finalmente tirando chinelinhos e pisando na areia fofa do Posto 10. Delícia. De longe se podiam ver as várias bolas de futvolei no ar, futvolando de um lado para o outro. Na areia, garotos e garotas congestionavam a beira d’água em pequenas rodinhas. Ambulantes vendendo desde “mate de limão geladão” até biquínis tomara-que-caia – sensação do inverno carioca –, passando por amendoim, brinquinho, queijo, canga e toda a parafernália praieira. Atentos ao horário – e uma boa parte do tempo de maré havia sido comida por nosso passeio de carro – disciplinadamente, saímos da praia às 16h30. A reunião com Mautner seria às 19h, no Leblon.

Quando chegamos ao apartamento do Catete, descobrimos que nosso entrevistado havia telefonado, em vão, quatro vezes. Ligamos de volta e ele parecia bem agoniado ao dizer que, mais uma vez, teríamos de adiar a entrevista. Poderia parecer que ele estava nos enrolando, mas, ao contrário, percebemos que ele queria que nosso encontro não ficasse espremido entre seus inúmeros compromissos, para que tivéssemos mais tempo. E foi assim que a entrevista ficou para as 16h do sábado, na casa dele. Sem Mautner, pela segunda vez. Que remédio? De banho tomado, mais uma vez caímos na noite carioca. Um amigo que mora lá havia recomendado um bar, que funciona também como loja de discos de vinil, sempre na Lapa. Ali haveria uma apresentação de música eletroacústica. Antes de chegar ao bar, Vanessa, nossa editora de vídeo, me explicou que era um tipo de música que “se aproxima muito do barulho”.

Nosso editor, Richard Sanches, e eu, Yasmin, em roda de bar no Rio

 

A pequena loja, à meia-luz, estava cheia de discos e de pessoas – homens em sua maioria, cada um segurando sua lata de cerveja – atentas ao artista, sentado de pernas dobradas no tapete diante de algumas maquininhas parecidas com sintetizadores, de onde saía todo o som da apresentação. Como alguém que não conhece música atonal, digo que achei a música curiosa. Identifiquei alguma coerência nas frases, elas tinham suas tensões. Finda a apresentação, nos despedimos do amigo carioca informando que iríamos a uma balada de hip hop, onde o Emicida se apresentaria, em Copacabana (desta vez, todos com RG em mãos). Nosso amigo do Rio não poderia nos acompanhar porque tinha de trabalhar: ele promovia festas noite afora. Mas não deixou de entortar a cara, dizendo que não gostava do público fã de rap: “Lá em São Paulo rap é hype, né? Aqui não”.

O bar Clandestino parecia a nós uma boa pedida. O DJ residente de sexta-feira é quem disponibiliza discos de hip hop – que muitas vezes ouvimos repetidamente – para serem baixados em um blog chamado Só Pedrada. Além disso, tínhamos visto no jornal que o Emicida faria ali um pocket show; o Rio nos dava uma segunda chance para que víssemos o rapper no palco. A balada era como qualquer outra da Vila Olímpia, em São Paulo, no que se refere aos preços das bebidas, e ao repertório do DJ, bastante comercial. O jeito era esperarmos pela apresentação do Emicida.

Enquanto tentávamos nos esconder do segurança, que já não aguentava mais pedir para as pessoas da pista apagarem os cigarros, a global Cléo Pires (a Surya da novela Caminho das Índias) se acabava de dançar perto da cabine do DJ, no centro da pista. Ao lado dela, um rapaz alto de camisa polo tentava, perseverante, ganhar a noite com a princesa indiana. Voyeures que somos, acompanhamos a empreitada do moço. Mais tarde, quando fui ao banheiro, perguntei a uma moça se ela tinha visto que a Cléo estava ali. Ela se dirigiu com desprezo e pena dizendo: “Você não é daqui não, né?”. Respondi que não, e ela emendou: “Olha, aqui no Rio a gente vê artista a toda hora. É na academia, é no calçadão, na boate… Então pega mal ficar comentando, entendeu? Você é uma pessoa melhor se você não fala disso”. A partir daí resolvi ignorar, à maneira carioca, a presença de celebrities na balada.

O show do Emicida foi ótimo. Ele vendia a sua mixtape, gravada e envelopada em uma capinha carimbada à mão, por dois reais – compramos as nossas, já que ainda não tínhamos. Era um material importante, porque queríamos entrevistá-lo para nossa edição seguinte. Uma mulher de uns 40 anos, que ficava dançando em volta do rapper, dando eventuais belisquinhos na barriga dele, ganhou homenagem no improviso: “A tiazona tá caindo em cima”. Mas nem a menção especial nem as risadas a inibiam.

Acordamos só meio-dia no sábado. Não só porque ficamos até tarde na rua, mas também porque ficamos presos para fora do apartamento de madrugada. Dois de nós voltaram um pouco mais cedo e logo mergulharam em um sono profundo. Não ouviram a campainha e os chamados – discretos para não acordar a vizinhança. Com medo de ter acontecido alguma coisa com os dois, chamamos o chaveiro, que cobrou um preço alto por ter sido tirado da cama na madrugada de domingo. Como recompensa pelo inconveniente, os dois providenciaram pão, patê, queijo e até vinagrete para o nosso brunch do dia seguinte. Naquele dia só tínhamos tempo para comer, tomar banho e reunir todas as coisas para a entrevista, às 16h; nada de conhecer o Pedregulho, conjunto habitacional na Gávea, projeto modernista da década de 1940, destinado a funcionários públicos. Muito menos ir à exposição das Vanguardas russas no CCBB, como havíamos planejando no início da viagem. Ficariam para a próxima, porque, concluída a entrevista a partir da qual redigiríamos o perfil de Mautner, era hora de partir. A rotina paulistana nos aguardava.

A equipe toda (da esquerda para a direita, Leo Eloy, Yasmin, Richard, Vanessa e Leandro), com Jorge Mautner ao centro, logo após a entrevista

figuinhas
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