Entre o faz de conta e a realidade
Poucas coisas são tão humanas quanto nossa capacidade e ímpeto de criar histórias Poucas coisas são tão humanas quanto nossa capacidade e ímpeto de criar histórias
arte de Gleise Karrara a partir de ilustração medieval, autor não identificado
por Giovanni Rossi por Giovanni Rossi
Existe um mistério cotidiano que me intriga já há algum tempo. Que o leitor diga se não é mesmo intrigante: onde há homens, há contação de histórias. Não poucas histórias, e não há pouco tempo. Pequenos sumérios eram embalados, há quase quatro mil anos, pelas histórias de Gilgamesh e sua busca pela glória imortal; na mesma época, egípcios ouviam, maravilhados, histórias como a do “Camponês Eloquente” e sua busca por justiça; mais tarde, há três mil anos, rapsodos viajavam pelas cidades jônicas, dóricas, eólicas e da Magna Grécia, contando eventos mágicos e bélicos que em breve se tornariam Ilíada e Odisseia; por volta desse mesmo tempo, os hebreus atribuíam a Moisés seus mitos de origem; os indianos contam e recontam há milênios os seus purana; há dezenas de séculos os chineses repetem suas anedotas, como as reunidas nos Shishuo xinyu. Toda mitologia e todo folclore se assenta sobre narrativas — que contam e recortam a realidade, sem se confundir com ela. Por que tão presentes essas formas de ficção? De que elas nos servem, de que elas têm nos servido nesse processo milenar — que segue, ininterrupto, desde os testes bíblicos, epopeicos, imemoriais, até os tempos de iPhone, Bolsonaro, covid-19 e Trump?

Poucas coisas são tão nossas, tão humanas, quanto nossa capacidade e ímpeto de criar histórias. Entregamo-nos com prazer e serena obsessão a elas; na ficção estamos em nosso elemento. Nada mais natural, portanto, que nos deixemos levar por essas invenções do espírito — o diabo, e quem nele crê, as chama de mentiras — e deixemos de lado a incômoda, desleal, fatal realidade. Por que a realidade, quando o mundo paralelo com que lhe podemos recobrir nos é tão mais grato? E como esta última pergunta não é meramente retórica, convém lhe dar uma tentativa de resposta: Talvez por uma exigência evolutiva. A realidade está sempre à espreita, esperando, a malvada, que baixemos nossa guarda; e quem se entrega a ilusões estará menos preparado para enfrentá-la quando vem o seu bote.

A ficção nos obseda com feitiços, nos tira o juízo, nos engana — e não contra nossa vontade, que fique claro

Entretanto, entregamo-nos aos prazeres da ilusão; alguns se nutrem de sua gorda ração diária de faz de conta diante da TV; outros, mais frugais, diante de densas páginas impressas; houve tempos em que ouvíamos histórias em volta de fogueiras; já existiu uma era do rádio; consta que antes da quarentena pessoas se reuniam e se sentavam nas confortáveis poltronas de amplas salas para ouvir mentiras projetadas ou encenadas à sua frente. Mas, ao fim, essas formas de fruição se assemelham no seguinte ponto: ao fruir, somos todos cúmplices desse crime contra a evolução (supondo correta nossa hipótese), quando deliberadamente damos as costas à verdade — ela nos cansa e enfastia! — e imergimos na fantasia, que tem como único fim simular outros mundos, qualquer outro mundo que não o real.

Lancei, acima, a palavra “encanto” — pois me parece ser justamente esse o efeito da ficção sobre nós. Ela nos obseda com feitiços, nos tira o juízo, nos engana — e não contra nossa vontade, que fique claro. Quando corremos às salas de cinema e teatro, às prateleiras das seções de ficção, ao Netflix, AmazonPrime, AppleTV e PopcornTime corremos voluntariamente a encantadores que nos inebriarão com as doces poções da mentira e do engano. Eis o mistério, que, de tão batido, mal chega a ser formulado.

Permita-me agora, leitor, que eu volte ao único tema que deveria nos ocupar nestas conversas periódicas: qual o valor da ficção para nós, obcecados por essas belas mentiras que têm entrada franqueada em todos os lares do mundo há não sei quantos milênios, ainda que todas as morais façam da proibição da mentira sua lição primeira? Apresento, em resposta, uma mera perspectiva, uma só peça do quebra-cabeça. Por que a ficção? Porque são as nossas ficções que determinam os contornos do nosso mundo. Por meio de nossas “ficções norteadoras” damos forma e imagem aos nossos valores, representamo-los, visualizamo-los, para que eles estejam integrados em nossas vidas e incorporados à nossa carne, para bem usá-los nos momentos em que formos chamados a usá-los.

Mas eis um tema em que ainda insistirei muito nesta modesta coluna: os valores não se equivalem, alguns valem mais que outros. O valor dos valores! Problema difícil. Volto à ficção para efeitos de comparação. O leitor consciencioso, se vasculhar seu rico repertório de ficções, irá facilmente concordar que certos contos são melhores que outros, que algumas histórias, imagens, montagens valem mais do que outras. Há, é claro, aqueles que dizem, sem medo da punição divina, “Eu sei o que vocês fizeram no verão passado é tão bom quanto O iluminado, e Romero Brito vale tanto quanto Portinari; é uma questão de gosto”. Mas nem mesmo esse relativismo pueril consegue disfarçar o fato de que nós naturalmente hierarquizamos o que nos cai sobre o colo, fazemos juízos de valor, escolhemos algumas coisas em detrimento de outras, e de preferência as melhores. Para cada um há o melhor e o pior, e isso é determinado por nossos valores. Mas, para além disso — e agora confesso esperar menos assentimento do generoso leitor —, há um critério para julgar esses critérios, há um modo de dizer qual o valor dos valores que usamos para distinguir o melhor e o pior. Outra vez, a ficção nos ajuda: Algumas delas nos tornam mais afiados para ver a realidade, mais atentos, perspicazes, escolados nas coisas da realidade; e, se temos a rara sorte de encontrar uma obra de arte digna desse nome, veremos que, além de potentes, elas são belas — ficções que, enquanto cultivam nossos sentidos para a realidade, ainda por cima tornam bela a realidade. (E percebam: o que digo a respeito da ficção, eu poderia dizer a respeito de valores; mas deixo para outra ocasião a reflexão sobre essa assombrosa semelhança.) Há, por outro lado, ficções que embotam nossos sentidos, seja porque elas nos tornam alheios à realidade (e isso não é nenhuma defesa do “realismo”!), seja porque fazem ver menos claramente o mundo da vida.

Essas considerações são programáticas, metodológicas. Com elas no bolso, poderemos olhar para uma ou outra peça de ficção e julgá-la a partir de um critério mais objetivo que o gosto, o nosso prazer pessoal ou a capacidade que ele tem de nos entreter. Procure-me de novo em uma semana, leitor, e então poderemos, juntos, aplicar esse “método axiológico” e colocá-lo à prova.

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