Celso Furtado: o economista e o subdesenvolvimento
No centenário de um dos intelectuais mais influentes do Brasil, vale a pena lembrar que os problemas com os quais ele se ocupou estão longe de ser superados No centenário de um dos intelectuais mais influentes do Brasil, vale a pena lembrar que os problemas com os quais ele se ocupou estão longe de ser superados
por Laércio Pires por Laércio Pires
A cidade de Pombal, na Paraíba, foi assim nomeada em homenagem ao nobre português – Sebastião José de Carvalho e Melo, o marquês de Pombal –, cuja parte da linha de ascendência remete aos índios Tabajaras, habitantes dessa região. Mas, se o rei d. José I, ao criar a Vila de Pombal no Brasil, homenageou um dos grandes homens com raízes profundas naquela terra, a mesma cidade paraibana, em uma dessas surpreendentes coincidências da história, generosamente agraciou nosso país, há cem anos, com um dos mais ilustres cidadãos que o Brasil moderno produziu.

Celso Monteiro Furtado começava, em 26 de julho de 1920, uma vida que seria profundamente dedicada ao país. Quando jovem, sonhava em ser um literato, mas acabou por reconhecer-se em uma missão: “captar o essencial da realidade através da análise […], transformar o mundo real em exercício mental”, como ficou registrado no documentário O longo amanhecer (2004). Seus companheiros da Comissão Econômica para América Latina (Cepal) – órgão da ONU que ajudou a estruturar – o reconhecem também como um contribuidor essencial, no sentido estreito da palavra, por ancorar as bases desse pensamento cepalino, de emancipação do continente. Ao contrapor uma visão absoluta de desenvolvimento, a Cepal destravou o progresso econômico de muitos países da região e estabeleceu um novo paradigma de desenvolvimento a partir de meados do século passado.

Com relação ao papel de Celso em seu governo, Juscelino teria dito simplesmente: “Só me arrependo de não tê-lo chamado mais cedo”

Se sua contribuição para o pensamento econômico mundial é notória, seu interesse pelo Brasil é primário e absoluto. Ao lado de Sérgio Buarque, Gilberto Freyre e Caio Prado, Celso conseguiu sintetizar grandes questões sociais brasileiras, com uma abordagem economicista que ia muito além da pura alocação de recursos escassos: ele se preocupou com toda a organização socioinstitucional que se ancorava nessa problemática. Em sua obra mais difundida, Formação econômica do Brasil – ou simplesmente FEB, como é chamado nos cursos de ciências sociais país afora, onde continua a ser leitura obrigatória –, Furtado faz uma análise estrutural dos ciclos econômicos do país. Fortemente influenciada pela leitura que o economista fez de Karl Mannheim, a obra visa capturar os caminhos para uma teoria desenvolvimentista genuinamente brasileira. Para Fernand Braudel, o grande historiador francês à frente da escola de Annales, a força criativa do FEB o coloca entre as grandes obras do pensamento econômico moderno, para além das fronteiras brasileiras.

Assim como Mannheim, Furtado tinha uma preocupação pragmática com a construção da intelligentsia, e desse modo rejeitava de pronto tanto uma solução liberal clássica de desenvolvimento quanto a proposta revolucionária do marxismo para o Brasil – falsos dilemas que, sessenta anos depois, ainda pautam a discussão política em nosso país. Celso faleceu em um momento em que o planejamento econômico começava a perder força e, assim, o economista que fora duas vezes ministro não pôde testemunhar que, no ano do seu centenário, uma pandemia seria responsável por mostrar ao mundo a importância do protagonismo do Estado para destravar o desenvolvimento. Foi Celso, por exemplo, o responsável pela criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), em 1959, com a intenção de pensar uma nova forma de desenvolvimento para a região. Ali, ele pensou formas de industrialização e desenvolvimento que buscavam conviver com a seca, em vez se tentar acabar com ela, como vinha sendo feito, infrutiferamente, até então. Com relação ao papel de Celso em seu governo, Juscelino teria dito simplesmente: “Só me arrependo de não tê-lo chamado mais cedo”.

Em um momento do documentário sobre Celso, a economista Maria da Conceição Tavares diz: “Ele sabia que a situação continuava muito ruim socialmente, que o subdesenvolvimento se reproduzia… Ele não estava abrindo mão daquela ideia, pelo contrário. Ele continuava com o diagnóstico estrutural pessimista sobre a reprodução interna do subdesenvolvimento”. Se ainda estivesse por aqui, talvez ele pudesse, mais uma vez, nos estender a mão, como o fez antes – seja como o iluminado pensador que foi, seja como homem de Estado, formulador de políticas públicas –, porque provavelmente constataria, como registrou no livro de memórias O longo amanhecer, “em nenhum momento de nossa história foi tão grande a distância entre o que somos e o que esperávamos ser”.

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