Celso Monteiro Furtado começava, em 26 de julho de 1920, uma vida que seria profundamente dedicada ao país. Quando jovem, sonhava em ser um literato, mas acabou por reconhecer-se em uma missão: “captar o essencial da realidade através da análise […], transformar o mundo real em exercício mental”, como ficou registrado no documentário O longo amanhecer (2004). Seus companheiros da Comissão Econômica para América Latina (Cepal) – órgão da ONU que ajudou a estruturar – o reconhecem também como um contribuidor essencial, no sentido estreito da palavra, por ancorar as bases desse pensamento cepalino, de emancipação do continente. Ao contrapor uma visão absoluta de desenvolvimento, a Cepal destravou o progresso econômico de muitos países da região e estabeleceu um novo paradigma de desenvolvimento a partir de meados do século passado.
Com relação ao papel de Celso em seu governo, Juscelino teria dito simplesmente: “Só me arrependo de não tê-lo chamado mais cedo”
Se sua contribuição para o pensamento econômico mundial é notória, seu interesse pelo Brasil é primário e absoluto. Ao lado de Sérgio Buarque, Gilberto Freyre e Caio Prado, Celso conseguiu sintetizar grandes questões sociais brasileiras, com uma abordagem economicista que ia muito além da pura alocação de recursos escassos: ele se preocupou com toda a organização socioinstitucional que se ancorava nessa problemática. Em sua obra mais difundida, Formação econômica do Brasil – ou simplesmente FEB, como é chamado nos cursos de ciências sociais país afora, onde continua a ser leitura obrigatória –, Furtado faz uma análise estrutural dos ciclos econômicos do país. Fortemente influenciada pela leitura que o economista fez de Karl Mannheim, a obra visa capturar os caminhos para uma teoria desenvolvimentista genuinamente brasileira. Para Fernand Braudel, o grande historiador francês à frente da escola de Annales, a força criativa do FEB o coloca entre as grandes obras do pensamento econômico moderno, para além das fronteiras brasileiras.
Assim como Mannheim, Furtado tinha uma preocupação pragmática com a construção da intelligentsia, e desse modo rejeitava de pronto tanto uma solução liberal clássica de desenvolvimento quanto a proposta revolucionária do marxismo para o Brasil – falsos dilemas que, sessenta anos depois, ainda pautam a discussão política em nosso país. Celso faleceu em um momento em que o planejamento econômico começava a perder força e, assim, o economista que fora duas vezes ministro não pôde testemunhar que, no ano do seu centenário, uma pandemia seria responsável por mostrar ao mundo a importância do protagonismo do Estado para destravar o desenvolvimento. Foi Celso, por exemplo, o responsável pela criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), em 1959, com a intenção de pensar uma nova forma de desenvolvimento para a região. Ali, ele pensou formas de industrialização e desenvolvimento que buscavam conviver com a seca, em vez se tentar acabar com ela, como vinha sendo feito, infrutiferamente, até então. Com relação ao papel de Celso em seu governo, Juscelino teria dito simplesmente: “Só me arrependo de não tê-lo chamado mais cedo”.Em um momento do documentário sobre Celso, a economista Maria da Conceição Tavares diz: “Ele sabia que a situação continuava muito ruim socialmente, que o subdesenvolvimento se reproduzia… Ele não estava abrindo mão daquela ideia, pelo contrário. Ele continuava com o diagnóstico estrutural pessimista sobre a reprodução interna do subdesenvolvimento”. Se ainda estivesse por aqui, talvez ele pudesse, mais uma vez, nos estender a mão, como o fez antes – seja como o iluminado pensador que foi, seja como homem de Estado, formulador de políticas públicas –, porque provavelmente constataria, como registrou no livro de memórias O longo amanhecer, “em nenhum momento de nossa história foi tão grande a distância entre o que somos e o que esperávamos ser”.