Os decadentes avançam
De nossa perspectiva inevitavelmente presente e, por isso, inevitavelmente decaída, o futuro se mostra nebuloso De nossa perspectiva inevitavelmente presente e, por isso, inevitavelmente decaída, o futuro se mostra nebuloso
No saben el camino (c. 1810-1820), de Goya y Lucientes
por Giovanni Rossi por Giovanni Rossi
Sim, é verdade: nós vivemos numa época de profunda decadência moral. E é verdade que isso desestrutura profundamente as formas antigas de vida, e desorienta os homens do presente: não sabemos bem o que fazemos, ou o que devemos fazer. Como os cegos de Goya, não conhecemos o caminho. Vivemos imersos na dúvida, sempre tendendo à desordem, a um passo do caos, e sentimos nosso chão vacilar. Pois quando os valores, antes firmes como alicerces, vacilam e decaem, sentimos tremer nosso edifício — e como os japoneses, que, dia sim, dia não, veem seus móveis sacolejando pelos cômodos graças às intempéries tectônicas, também nós podemos ver valores dançarem estranhamente à nossa frente, em plena luz do dia. É nossa civilização, com sua já não tão sólida moral e suas já não tão firmes certezas, o que vacila, submetida a pequenos, renitentes, cotidianos cataclismos.

Assim, é verdade: de nossa perspectiva inevitavelmente presente e, por isso, inevitavelmente decaída, o futuro se mostra nebuloso. Não conseguimos ver tão distintamente o que se mostra aos nossos olhos como os nossos avós conseguiam — era Gil quem dizia, quando eu próprio era pequeno, que antes o mundo era pequeno, porque a Terra era grande, e hoje ele é grande, porque a Terra é pequena. O mundo mudou, e com ele nossa imagem do futuro; e o que se desenha para lá da névoa que hoje nos embota os olhos pode bem ser monstros. Sim, é verdade. E nesse ponto talvez todos os conservadores estejam certos.

Mas a questão é que simplesmente não sabemos — não é verdade, meus caros conservadores? De modo que, mais para lá da cerração, pode muito bem haver anjos. E ainda que nossa visibilidade seja baixíssima — e que o futuro se mostre muito mais incerto do que se mostrava para os nossos avós —, é verdade também que alguns de nós caminham com passos firmes através da névoa, e com uma velocidade (suicida, alguns dirão) nunca antes vista. Por isso não me surpreendo quando, vez ou outra, ouço algum incauto, uns bons passos à minha frente (à nossa frente, leitor), dizer, de lá da vanguarda, que apalpa anjos; era só medo o que nos fazia interpretar como monstruosos os vultos alados que nos esperavam além da bruma. (Não que eu creia neles cegamente, ouvindo deles sem os ver; e, de toda forma, parece-me natural supor que há algo de monstruoso em eunucos alados.) Seja como for, insisto, mais na retaguarda: nossos valores decaem, o mundo se expande, nossas formas de orientação já não são mais seguras. E assim a dúvida, a desordem e o caos são a única realidade de nosso século.

Mas, quando voltamos nossas cabeças para a turba e sua gritaria, percebemos que também eles estão envoltos na mesma névoa que nos turva as vistas

Às minhas costas, no entanto, ouço uma turba de cautelosos agitados gritar: que não avancemos! Que o caminho já trilhado é o único seguro, que era por conhecê-lo que nossos avós sabiam o caminho: que retrocedamos! Mas, quando voltamos nossas cabeças para a turba e sua gritaria, percebemos que também eles estão envoltos na mesma névoa que nos turva as vistas. E, talvez ensurdecidos por sua gritaria, eles não ouvem os tremores da terra, que abrem crateras às suas costas, que destroem e inviabilizam os caminhos antigos. Os poucos entre eles que, em compensação, sentem tremer a terra sob seus pés se enganam tão grotescamente ao buscar por suas causas que por vezes não conseguimos conter o riso diante de suas hipóteses. Sabemos que são forças históricas de enorme magnitude o que nos tira o chão e os valores antes firmes (a história, por vezes, tem uma densidade geológica); mas para os conservadores a causa somos sempre nós, meus amigos progressistas: nos chamam globalistas, marxistas, esquerdistas, e supõem que, se fôssemos convertidos ou eliminados, teriam de volta seu antigo chão, seu antigo mundo.

Veja então que (e talvez isso sirva de consolo a nós que nos assumimos perdidos) há aqueles que nem sequer notam que se encontram à deriva. O problema é que, se antes bastava rir dos pobres coitados que negam as evidências de que estão perdidos, e não notam que a causa disso vai muito além de mim, hoje são eles, os cegos, os que nos conduzem. E a gravidade dessa situação não é tanto sua cegueira, mas, em primeiro lugar, o fato de que julgam ver claramente e saber para onde vão; e, em segundo, o de que se guiam por seu faro mais animal que racional ao nos levar para os escombros do caminho que se fechou às nossas costas, não para qualquer lugar real, mas para visões fantasistas de um passado para sempre perdido. Nós os ouvimos, e sentimos vibrar em nossos ossos e nossas mentes a convicção de que não há retorno possível — que somos nativos da desordem e do caos, que a segurança uma vez vivida é só uma lembrança remota e provavelmente falsa, que o passado não é mais caminho algum.

Sim, é verdade, nós nascemos nos estertores do segundo milênio, e ao nascer fomos lançados à decadência: mas justamente por isso este é o nosso lar. E nosso dilema existencial é este: ou tentamos nos sentir em casa em meio ao caos, à luta e à desordem, ou seremos para sempre estrangeiros em nosso país, deslocados do presente, amantes de um passado enterrado e incrédulos em qualquer promessa de futuro. Ou choramos pelos valores derramados, fazendo de nossas vidas um perpétuo pesar pela palpável decadência, ou nos assumimos decadentes, e extraímos da dissolução dos valores, da incerteza e da dúvida, a coragem para seguir adiante sem saber o que nos espera. Sim, é verdade, já não temos aqueles valores robustos e vistosos de nossos avós. Mas, se tivermos de tirar deles uma lição, que seja o desprezo pelo medo e pela covardia que porventura nos brota no peito quando enfrentamos o desconhecido. Que a nós, decadentes, reste a virtude da coragem para atravessar a decadência.

figuinhas
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