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Conheça o novo parceiro da FIGAS: O Farolete

É com muito orgulho e prazer que a Editora FIGAS apresenta seu mais novo parceiro: O Farolete, uma publicação virtual de divulgação filosófica! Leia a seguir o editorial de lançamento e clique aqui para ver nossas primeiras e iluminadas publicações.

Há tantas concepções de filosofia quanto há filósofos. Mas há algo de intrigante nessa dispersão de ideias: por mais que cada um tenha uma ideia diferente do que é esse seu ofício, os filósofos seguem se reconhecendo uns aos outros como filósofos, como praticantes da filosofia. Há muita coisa a se aprender com isso. Uma delas é que seria pouco útil buscar uma definição do que seja “filosofar”. Filosofia, como diria um filósofo vienense, é um conceito sem fronteiras definidas, e as diferentes filosofias se parecem umas às outras não porque pertencem a um padrão seguramente identificável; se parecem como o seu irmão ou a sua prima se parecem com você: há algo no nariz, no olho, no formato do queixo, no jeito de andar ou não sei onde que denuncia que vocês pertencem à mesma família. Há algo no jeitão de Bergson que se parece com o de Hume, e Tomás de Aquino tem alguma coisa de Sêneca, e este de Arendt, mas é difícil dizer bem o quê. Nós dizemos que são filósofos, por mera semelhança de família, e não porque eles atenderiam aos critérios do que seja a filosofia, porque eles cumpririam a definição do que seja filosofar.

Deixando de lado a modéstia exigida por uma etiqueta que rejeitamos, os autores d’O Farolete nos vemos como elos tardios da corrente que liga os filósofos de diferentes tempos e lugares; nos vemos como semelhantes aos filósofos e, por isso, filósofos. Não porque atendemos aos critérios de uma definição, mas porque exercemos o ofício a que se costuma dar o nome de filosofia. O ofício, estranho como tudo o mais em filosofia, consiste em pensar e falar de uma certa maneira, e escrever de uma certa maneira — maneira animada por uma disposição diante da existência comum a quase todo filósofo. O exame do cotidiano e dos grandes eventos, a busca por compreensão, por amplitude de visão, por sempre mais perspectivas. O apreço pela dúvida, o amor às perguntas e a insatisfação com respostas definitivas. Uma esperança incansável de dar voz ao universal que ultrapassa a particularidade — junto com as inúmeras e conflitantes respostas que essa questão convida. O interesse pela gênese, pelo valor, pela constituição histórica ou íntima de fatos e seres. Sempre o autoexame e o interesse pelo mistério da consciência, pelo mistério da liberdade, pelo mistério da veneração. Que o leitor monte o quebra-cabeça com essas peças, e terá uma figura mais ou menos identificável, que não tem um rosto, mas muitos.

Tal como nos chegou, a filosofia é um ofício que depende de um jeito de pensar, falar e escrever. Em sua longuíssima tarefa, ela divisou muito método, organizou muito pensamento e orientou muito olhar, criou conceitos e se especializou em muitos diferentes modos de busca por objetos normalmente impalpáveis. Para isso, ela se assentou sobre um domínio muito rigoroso da linguagem; aliás, frequentemente teve de reconfigurar a linguagem — o que por vezes a torna difícil de seguir. Quem se lembra da experiência de ler pela primeira vez um grande filósofo, não importa em que idade, irá recordar a estranheza da experiência: às vezes palavras conhecidas, há cinco minutos muito familiares, tornavam-se completamente estranhas; sentenças aparentemente bem formadas, depois de lidas, pareciam mera justaposição de palavras, e não mais português; ou, no melhor dos casos, o que estava escrito era claro, mas por que raios o filósofo dizia aquilo?

Assim como o filósofo insiste em falar como o estrangeiro de sua própria língua, também as coisas de que ele fala são pouco familiares. Aquele que é talvez o maior dos filósofos alemães pretendeu dar uma descrição final do conjunto desses objetos filosóficos: Deus, o cosmos, a alma, a liberdade. Temas que nos dizem respeito num nível muito profundo, mas que na superfície de nossas vidas nos escapam, ou mais: desaparecem. Esses objetos são incompatíveis com a vida prática do trabalho, da sobrevivência, do sexo, da diversão, e por isso os deixamos de lado, os adiamos para o momento em que teremos o tempo e paciência para eles. Mas o filósofo tende a insistir: trabalho, sentimento, sobrevivência, clima, sexo, vontade, diversão, os planos, os erros, o futuro, o passado — tudo depende desses objetos filosóficos, e um modo de vida que se exime de encontrar a relação entre esses termos apenas aparentemente desconexos não é digna de ser vivida — como disse um dos fundadores desse modo de pensar e viver que é a filosofia.

Mas ainda que a filosofia dependa de uma linguagem própria e não possa se separar de seus objetos sublimes, isso não significa que a prática do filósofo esteja necessariamente confinada ao mundo das nuvens. As muitas perspectivas filosóficas têm impacto sobre a vida prática, depende dela e por isso está em constante diálogo com ela. E os autores que escrevem O Farolete estão convictos de que esse diálogo com o mundo da cultura pode ser tornado mais direto, mais claro. Não é preciso um mergulho de anos no mundo das palavras difíceis e dos objetos inalcançáveis, no estudo minucioso dos clássicos filosóficos, para que se veja o modo bonito como a filosofia lança novas luzes a um objeto conhecido. Aliás, foi provavelmente por ter visto esse belo fenômeno ótico, antes de qualquer estudo, que nos decidimos a dar o salto, e a mergulhar. Com isso, reproduzir esses momentos é não só possível mas necessário: pois se a filosofia deixa de iluminar diretamente, se ela não se liga mais ao mundo concreto, ela perde sua razão de ser. A luz que lança O Farolete não é um clarão que alcança Deus, a alma e a liberdade, mas que ilumina de perto e confere clareza ao trivial — e, com isso, convida aos claros enigmas escondidos no ordinário.

Para fazer isso, as decisões editoriais que pautam a produção dos textos que aqui vão têm uma orientação não acadêmica, não técnica. Assim como cientistas escrevem excelentes livros de “divulgação científica”, ou seja, publicações bem informadas sobre as mais diferentes ciências, cujo tom acessível não trai a complexidade do tema, queremos produzir um análogo, uma “divulgação filosófica” que esteja à altura da melhor filosofia produzida pelos clássicos ou pelos melhores filósofos profissionais do presente. Com isso, não se trata de escrever sobre filosofia, sobre sua história ou sobre seus objetos mais sublimes, mas de remeter a eles ao escrever filosoficamente sobre os mais diversos temas — em especial sobre aqueles que nos tocam em nossas vidas cotidianas, pela experiência concreta, pelo contato com a arte, pelos temas da imprensa, pelas apreensões com a política e a vida coletiva, pelos impasses, dúvidas e certezas cotidianas.

O Farolete frequentemente (mas nem sempre) dependerá da pesquisa acadêmica de seus colaboradores — da calma ao ler, do rigor ao escrever, da produção científica ampla e amadurecida, de longos períodos em bibliotecas e escritórios que têm como resultado textos especializados, a respeito de problemas sutis e provavelmente pouco acessíveis ao público geral. Mas não é uma revista acadêmica. Ela é o espaço para aqueles que, feito esse trabalho de exploração e autoformação, querem aplicar esses resultados a problemas concretos, numa linguagem clara e em bom português, que pretenda se livrar de jargões, por ao menos dois motivos: porque o jargão, em geral, é uma abreviação para o pensamento — economizamos tempo e etapas ao nos valermos de conceitos técnicos que são transparentes à nossa audiência antes que o definamos e expliquemos com clareza; porque o jargão afasta a filosofia dos problemas concretos, problemas políticos, éticos, estéticos, epistemológicos envolvidos em nossas vidas.

Os autores d’O Farolete se interessam profundamente pelas ideias de Platão, Espinosa, Hegel ou Derrida, e se nutrem delas. Mas aqui elas aparecerão apenas na medida em que estejam incorporadas à prosa de nossos textos. Nosso interesse imediato não é interpretar ou entender o pensamento de Maquiavel ou de Heidegger; mas se virmos as perspectivas abertas por esses autores aplicadas a novos objetos, objetos de nosso século, de nosso país, impregnados por nossos problemas específicos — aí esse pensamento se torna atraente. Citações e interpretações de ideias alheias são, sem dúvida, uma etapa fundamental na formação de nossos autores; e obras dedicadas a isso, contribuem imensamente para a nossa cultura e para o avanço de nossa compreensão a respeito de autores clássicos — que nos reapresentam o mundo e nos ajudam a pensá-lo. Mas nossa revista não é um espaço de estudos, e sim uma arena de disputas, ou um laboratório de ideias.

Por motivos semelhantes, notas de rodapé não são usuais n’O Farolete. Num regime de produção científica, é fundamental citar fontes, garantir que as ideias sejam atribuídas a seus donos. Isso é parte dos padrões de honestidade no trabalho acadêmico. Essa prática, porém, tem alguns ônus: os textos se tornam pesados, por ter de prestar contas de si o tempo todo, o trabalho de referir é cansativo e esse esforço normalmente se manifesta nos textos acadêmicos como um fardo a ser carregado por autores e leitores. Mas O Farolete quer textos que não transpirem; não haverá aqui tours de force, monumentos de rigor e precisão. Queremos um outro tipo de ambiente, em que a criação também se faça por empréstimos. Para nós a honestidade intelectual é um pressuposto que se demonstra tacitamente na força do pensamento: uma ideia alheia pode ser apropriada, e será de tal modo incorporada aos propósitos e às prosas dos autores, que ao fim não será mais a ideia de um outro filósofo ou pensador. Ela terá nova aplicação, desenvolvimento, exercício; ou seja, será outra ideia, de outro filósofo, o que aqui escreve.

Esses filósofos da prosa clara são a matéria fundamental d’O Farolete, e sua base de sustentação são suas colunas. Elas são eixos temáticos definidos pelos autores, e que representam uma parcela de seus interesses. Que haja essas colunas é importante para que os eventuais leitores possam se situar no interior da revista, e entender as diferentes perspectivas que ela abriga. Mas, ao fim e ao cabo, é a personalidade do autor (seus temas e seu estilo) o que definem os limites temáticos da coluna. Daí porque O Farolete não se define por seus leitores — que sempre serão bem-vindos com o máximo de nossa hospitalidade. É que, uma vez determinados os seus princípios de clareza e foco na comunicação simples de ideias difíceis, nosso foco é estimular a escrita filosófica como criação literária. A leitura e o público leitor não são meta, mas consequência de nossos esforços.

O Farolete é uma revista digital, mas não se confunde com uma rede social, e por bons motivos. Eles têm a ver com uma certa concepção a respeito do que significa “tornar públicos” textos filosóficos. Há, em nosso século, uma confusão entre o que significa publicar textos, confusão determinada pelo modo como essa palavra é usada em redes sociais. Para entender o modo como os autores d’O Farolete se comunicam, é importante não confundir a ideia de que nossos textos serão públicos com a ideia de que o direcionamento ao público é o impulso mais importante e o fundamento da escrita. O que se busca aqui é, antes de tudo, o exercício da expressão filosófica. Mas o que se comunica aí não é feito para o consumo, não é material expresso, não é feito para ser comentado, mas para ser refletido. E, se esse é o caso, a reflexão que deu origem ao texto já é fim, não meio. É claro que esses resultados — a obra, o texto — estão abertos a revisão; e é claro que a filosofia se beneficia do diálogo, mas não de comentários ao pé do texto. Assim como a reflexão filosófica posta num texto filosófico é o ponto final de uma longa reflexão, ele preferirá estabelecer diálogo com reflexões igualmente maduras — e não com curtidas ou comentários elogiosos ou críticos que se possam apresentar em caixas de diálogo, ou de comentários.

Dito isso, o contraponto: O Farolete não é inimigo das redes sociais. Como bons praticantes de nosso ofício, desconfiamos delas, mas não deixamos de nos valer de suas potencialidades. Não há diálogo filosófico possível na velocidade exigida pelas redes sociais, pois as ideias impressas em textos filosóficos exigem tempo para adentrar e sedimentar na alma do leitor. Mas mesmo a semente que demora a germinar precisa ser espalhada, e quanto mais longe do pé cair a semente, melhor a árvore cumpre sua missão

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Ser muçulmana e feminista no Brasil

Gilliam Melanie Moreira Ur Rehman é brasileira, tem 38 anos e mora em São Luís, capital do Maranhão, cidade em que nasceu. Ela fez sua reversão[1] ao Islam[2] seis anos atrás, em 2014. É graduada em História pela Universidade Estadual do Maranhão, além de ter se especializado em antropologia e sociologia.

Entrei em contato com ela em no começo de julho, depois de tê-la encontrado em uma rede social, em um grupo de muçulmanos progressistas. Ela de pronto me chamou a atenção pela força exemplar de suas falas libertárias. Como tenho me dedicado a estudar as representações sobre muçulmanos em redes sociais, logo notei que o depoimento de Gilliam seria uma grande contribuição para essa reflexão, pois traria elementos sobre o feminismo e sobre o que significa se tornar uma muçulmana no Brasil contemporâneo. Desse modo, o caso de Gilliam contrastaria com o que tenho abordado com mais profundidade em minha pesquisa, a islamofobia. Assim, Gilliam pôde apresentar um tanto da realidade das pessoas cujas vidas e cujos pensamentos vejo ameaçados pelo preconceito.

Depois de algumas conversas, tive a certeza de que eu e outras pessoas deveríamos conhecê-la melhor. Naquele começo de julho, ainda ofegante enquanto convalescia da covid-19, ela foi gentil o suficiente para me conceder a entrevista que se segue.

 

Assalam alaikum.[3] Agradeço a sua disposição pra gente conversar, para nos ensinar algumas coisas acerca do que é ser muçulmana no Brasil. Primeiramente, quando começou sua relação com o Islam e como ela se manifesta hoje?

Wa alaikum salam.[4] É um prazer, Felipe. Estou no Islam desde 2014, tem seis anos já. Há seis anos fiz minha reversão. Sou formada em história pela Universidade Estadual do Maranhão, sou especialista em antropologia e sociologia e estou aqui, representando o Islam em São Luís, porque a gente não tem uma comunidade tão expressiva aqui. Então eu sou quase uma referência, vamos dizer assim. Muitos me procuram pra tentar entender, pra tentar desconstruir, por curiosidade. E assim a gente vai, de certa forma, fazendo dawah,[5] de certa forma levando o Islam àqueles que não conhecem e do jeito mais positivo, uma vez que a gente sabe que a mídia não contribui muito pra isso.

 

Isso é fato, a mídia acaba mostrando muitos estereótipos. E, apesar desses estereótipos, você se tornou muçulmana. Por que você escolheu essa religião, o que a motivou a se tornar muçulmana?

Como eu sou formada em história, eu trabalhava no Arquivo Público e na Superintendência de Patrimônio do Estado do Maranhão e nesse meio conheci muitos pesquisadores. Vale dizer que aqui em São Luís nós temos uma concentração de famílias de origem sírio-libanesa. Por isso, na época, o presidente da Academia Maranhense, que era o Benedito Buzar, que tem essa ascendência, me pediu pra fazer uma pesquisa, no caso, pra rascunhar uma genealogia e tentar tatear a vinda dessas famílias pra cá. Mas ele queria fazer algo mais complexo, mais completo. Queria falar um pouquinho da sociedade, da religião, dos costumes, e aí eu tive que, pra além das fontes primárias – ir até o arquivo, fazer a transcrição dos documentos e tudo o mais –, partir também pras fontes secundárias, que me dariam base pra poder fornecer esse material pra ele. E foi assim que eu fui tateando até chegar à religião.

Quando cheguei à religião, eu também desconstruí muitas coisas. Muito embora eu venha da área da história, e tenha todo um olhar mais sensível pra determinadas questões, o Islam não é um contexto de estudo real nas universidades. Então eu tive que fazer também esse trabalho de desconstruir na minha mente várias coisas, e dessa forma eu fui adentrando, fui gostando, fui me identificando, porque eu sempre fui uma jovem muito inquieta no sentido espiritual, eu venho de uma família que tem tradição católica, são cristãos. A família da minha mãe é de origem portuguesa, meu avô, Manuel Moreira, é português. A família do meu pai também vem da Península Ibérica e são pessoas mais conservadoras, pessoas que vêm dessa tradição cristã mesmo, mas eu nunca me convenci muito dos rituais do catolicismo – batizar, fazer a crisma, a primeira comunhão. Enfim, o Islam começou a me abrir possibilidades de reflexão sobre várias coisas, sobretudo a questão de gênero, sobretudo me entender como mulher nesse mundo. Então foi a partir disso que eu fui me aprofundando no Islam até chegar à reversão.

 

Você disse que deparou com questões que mexeram com você, com sua intimidade, com seu pensamento, enquanto realizava uma pesquisa histórica. Isso me parece algo essencial, que acaba motivando verdadeiramente a pesquisa. Eu gostaria que você falasse mais sobre como foi essa pesquisa, saber um pouco mais dela, pois de certa forma é saber um pouco mais de você também.

Essa pesquisa foi crucial para mim. Digamos que ela foi o ponto de partida para que eu chegasse à minha espiritualidade, à fé que hoje eu professo. Muito embora a pesquisa que eu tenha feito não tenha me dado instrumentos pra trilhar o caminho espiritual, ela me deu mesmo foi a base histórica, de algumas coisas que ocorreram aqui no meu estado. Alhamdulillah[6] eu agradeço muito ter sido chamada pelo Benedito Buzar pra fazer isso, porque foi a partir dessa atividade profissional que eu fui caminhando, caminhando, tateando o Islam, ainda que às escuras, até chegar aonde estou.

O Islam está aqui, está presente há muito tempo

Mas foi com essa pesquisa que descobri o fluxo migratório dessas famílias aqui no estado do Maranhão, que se deu ali, por volta de 1880 até 1900. Essas famílias vieram pra cá a convite do Imperador [d. Pedro II], que mantinha relações diplomáticas com o Oriente Médio, e vinham fugindo da perseguição movida pelos turcos. Depois, tivemos outro momento de fluxo migratório dessas famílias, já entre 1920 e 1940, quando houve todo aquele processo de industrialização do Sudeste brasileiro, mas que de alguma forma algumas famílias vieram parar aqui no estado do Maranhão, tanto que há vários aspectos culturais e arquitetônicos aqui no estado em que você consegue identificar uma presença árabe muito forte, a presença moura. E a gente também tem que considerar que Portugal sofreu influência moura. Querendo ou não, às vezes as pessoas acham que o contexto do Oriente, que o próprio Islam é algo tão apartado da nossa realidade, mas não é. O brasileiro tem essa questão do desconhecimento da sua própria história. Portugal teve muita influência moura. O Islam está aqui, está presente há muito tempo. A gente sabe sobre toda a questão dos Malês,[7] dos escravos, as próprias investidas no período das navegações tinham a presença de muçulmanos nas tripulações, enfim…

Pude também perceber a influência que essas pessoas que vinham dessas famílias de origem árabe, sírio-libanesa, tiveram na política local quando chegaram aqui. A gente teve alguns governadores aqui no estado do Maranhão que eram descendentes de árabes. Teve o José Murad, o Antônio Dino, o Ribamar Fiquene, todos eles são de origem árabe, e se você for buscar mais a fundo, certamente a fé ancestral dessas pessoas era o Islam.

Então, dando um salto dessa fase acadêmica, essa fase mais científica, quando eu comecei de fato a fazer a minha pesquisa, a minha busca pessoal, aí eu tive que realmente fazer um trabalho solitário, porque aqui eu não tinha a quem recorrer, eu fui ainda atrás de algumas pessoas que faziam parte do meu círculo de amizades, eu tinha Sadat, Sauaia, que são amigos de adolescência, que são de famílias de origem árabe, mas todos já perdidos nesses costumes, ninguém islâmico, todo mundo já com os costumes ocidentalizados porque nasceram aqui, viveram aqui, se criaram aqui. Eu tive que realmente buscar fora do estado esse meu alimento espiritual pra poder entender o motivo de querer tanto saber sobre o Islam para além desse contexto político que a gente acompanha na TV, além dessas notícias que nos são colocadas todos os dias, nos bombardeando, fazendo que a gente crie uma visão completamente deturpada do que é o Islam, sem separar a política e os interesses por trás de tantos eventos que marcaram a humanidade do século XX pra cá.

Assim, eu tive que fazer uma busca nas redes sociais, procurar lideranças, procurar pessoas, um amigo de um amigo de um amigo que é muçulmano. E dessa forma comecei a angariar informações pra eu poder entender que de fato era aquilo que eu queria. E a partir disso eu também comecei a buscar contatos aqui em São Luís, porque eu parti do seguinte princípio: assim como eu tenho essa inquietação, alguma outra pessoa aqui também deve ter, deve haver alguém aqui que também esteja na mesma vibe que eu estou. E assim eu comecei a procurar, cheguei a uma determinada pessoa, que estava aqui no Brasil, morando aqui em São Luís, e é muçulmano, e foi com ele que eu comecei a pegar as primeiras informações, as primeiras bases, até chegar a fazer a shahada.[8]

 

Ouvindo você falar sobre essa pesquisa histórica transbordar para uma busca espiritual, a gente percebe como o Islam é algo muito próximo, uma vez que é parte da história, da própria sociabilidade das pessoas, da história do país. E ao mesmo tempo é algo de que as pessoas se distanciam por conta desses fatores também colocados por você, que fazem com que muita gente mistifique e se recuse a tentar entender a religião, uma vez que é mais fácil resumir toda a questão à violência, à política, e ignorar o lado da espiritualidade, o qual você perseguiu. Depois que você se tornou muçulmana, o que mudou pra você? Como é ser uma mulher muçulmana? Como a Gilliam muçulmana se aproxima ou se distancia da Gilliam de antes da reversão? Você disse que notou mudanças particulares, internas, mas e quanto às pessoas à sua volta? Elas lidaram tranquilamente, a famílias, os amigos…

A minha busca pelo Islam, desde o princípio, foi compartilhada com a minha família e com os amigos mais próximos. Então essas pessoas acompanharam toda a minha trajetória, toda minha curiosidade, toda minha inquietação, toda minha fome e sede desde o início. Quando eu parti pra essa pesquisa, quando eu fui contratada pelo Buzar pra fazer essa pesquisa, eu acabei também deparando com algumas informações da minha família. Então, como eu disse, acho que grande parte dos brasileiros tem um pé, de uma certa forma, no Oriente, em virtude dessa dominação moura que tivemos em Portugal. Tateando essas famílias, eu consegui chegar a vários nomes de pessoas da minha própria família. Querendo ou não, foi uma busca pela minha ancestralidade também. Incrível, Allah é um facilitador, e como Ele facilitou minha vida nesse sentido! Porque desde o princípio eu nunca encontrei resistências, obstáculos, críticas por parte das pessoas que mais importavam na minha vida no que se referia ao fato de eu querer aprender e querer adentrar esse mundo. Ainda mais da minha avó, que é uma senhora hoje que tem 84 anos, católica fervorosa, ela nunca me criticou, nunca tomou aquilo por espanto. Teve, sim, um gesto belíssimo, há dois anos, que foi ela fazer um hijab[9] pra mim. Isso me tocou profundamente, me emocionou muito, e todas as vezes que lembro me emociono muito. Porque ela é idosa, já com toda a dificuldade de ir pra máquina de costura, e ela comprou um tecido muito bonito, costurou e me presenteou. Isso realmente foi a prova de como é possível você amar aquilo que é diferente de você. E o Islam tem sido muito isso também.

 
 

Com o hijab feito pela avó

 
 

o maior impacto foi quando eu compreendi o que era usar o hijab

Eu conheço histórias e mais histórias, contextos e mais contextos, de várias mulheres, das mais variadas realidades, das mais variadas origens sociais, que tiveram contato com o Islam. Muitas tiveram milhares de dificuldades, de incompreensões, e eu, com toda a estrutura familiar que tive, apoio e amor, pude ser solidária a essas pessoas e oferecer algum tipo de conforto, algum tipo de amparo, de força. Acho que o maior impacto foi quando eu compreendi o que era usar o hijab¸ pois eu não usei logo de início, eu não conseguia até então, sendo bem honesta, e acho que é uma coisa que precisa ser falada, com coragem, que mesmo tendo feito a shahada, mesmo estando feliz com minha escolha espiritual, eu me questionava quanto ao uso do hijab. Eu ficava me perguntando que sentido havia colocar aquele tecido na minha cabeça. E eu jamais colocaria se eu não conseguisse compreender o significado de usá-lo. No dia que eu compreendi, que eu senti, que eu coloquei e fui a público, foi o dia que minha mãe mais se impactou. Mas ela não teve uma reação negativa, ela não teve uma reação que me desmotivasse. Muito pelo contrário. Não foi um impacto para as pessoas também, pois elas já sabiam da escolha que eu havia feito, os amigos, a família, tios, primos, enfim, pessoas do meu trabalho já acompanhavam tudo, então não foi um impacto tão cruel pra essas pessoas. Até porque eu sempre conversava, eu sempre compartilhava o meu conhecimento com elas. “Olha, as muçulmanas, muitas usam o hijab”, aí alguns iam perguntar se era burca, e eu tinha que fazer toda aquela explanação e ser muito didática em tudo, de uma forma muito simples, para que as pessoas entendessem, para que elas pudessem compreender. Então, quando decidi usar, foi muito tranquilo, bem como foi muito tranquilo também a minha reversão. Como eu falei, por parte das pessoas que de fato interessavam.

Se em algum momento de minha trajetória existiu alguém que se impactou, que criticou, não chegou até a mim, não me afetou também, porque, né, o que importa é pai, mãe, irmã, as pessoas ali mais próximas. Talvez, Felipe, o que mais tenha me preocupado nessa minha caminhada e no momento em que eu resolvi assumir essa vestimenta que ela traz, ela é bem carregada de um simbolismo, a gente sabe disso, e esse simbolismo, dependendo do conhecimento de cada um, ele pode ser negativo, o que mais me preocupou mesmo foi a questão profissional, a questão do mercado de trabalho. E aí é uma coisa que eu posso relatar mais adiante e que, mais uma vez, Allah subhanna wa ta’ala[10] facilitou muito pra mim. Infelizmente eu tive que abrir mão da carreira que eu escolhi e hoje eu me sinto até covarde por isso, porque hoje percebo que eu não deveria ter feito isso. De todo modo, nos trabalhos que eu tive já usando hijab, não tive problemas, não tive retaliações, eu não sofri discriminação, nem por parte dos empregadores, nem por parte dos colegas de trabalho. Por isso, eu sempre procuro pensar que, se eu não passei por situações desse tipo, é porque Allah me prepara para que eu seja forte e para que eu possa estar nas lutas de gênero pra ajudar as mulheres a assumirem suas bandeiras, a assumirem suas identidades, assumirem suas crenças.

 

Sua história, nesse sentido, é atípica mesmo. A gente sabe que muitas vezes as mulheres muçulmanas acabam sofrendo todo tipo de preconceito, e as pessoas se colocam de uma forma muito negativa perante essas mulheres. Eu venho pesquisando a islamofobia e encontro muita coisa contra as mulheres. Como você mesma disse, é um simbolismo negativo que muitas vezes se associa. Mas você me deixou uma questão. Quando você disse que procurou pessoas pra conversar sobre o Islam e falou sobre a questão de gênero, como é essa questão da sororidade entre as mulheres muçulmanas? Como foi a relação com elas? Vocês têm alguma forma de apoio mútuo? A gente sabe que, na religião, existe isso, um pouco de um muçulmano ajudar outro muçulmano, mas como foi isso com você, com essa comunidade que você acessou?

As pessoas que estão fora do Islam sempre criam a dúvida em torno da mulher. A mulher é uma figura muito central em tudo isso. Sempre vêm aquelas perguntas: “você usa esse tecido na sua cabeça porque você é obrigada pelo seu pai, pelo seu marido?”, “você vai escolher o marido?”, “você pode estudar?”, “você pode trabalhar?”. Isso pras pessoas que não me conhecem, lógico. As pessoas que me conhecem sabem da minha trajetória enquanto profissional na área de história, a minha trajetória profissional na outra área que atuo hoje. Eu tive que descobrir competências e habilidades pra retornar ao mercado de trabalho após uma fase de depressão, e que me deixou fora do contexto de sala de aula e hoje é uma coisa que estou tentando amadurecer na minha cabeça pra retornar, porque eu sinto que a educação precisa de mim também, e precisa de mim enquanto educadora muçulmana, inclusive. Eu preciso, mais do que nunca, ocupar espaços.

Mas as perguntas são sempre em torno da mulher: “pode isso?”, “pode aquilo?”, “pode ter amiga?”, “pode sair?”, “pode ir no shopping”, “pode trabalhar?”, “pode dirigir?”, “pode ter um negócio?”, são sempre essas perguntas. E eu estou sempre disponível e acessível pra responder a quem recorrer a mim. Já aconteceu até de eu ir ao shopping e estar sentada, comendo algo, esperando uma amiga, e chegar alguém e perguntar se eu falo português, se eu sou brasileira, e aí eu digo que sou brasileira, que sou daqui inclusive, e aí começam a querer saber mais coisas, e eu estou ali disposta a esclarecer e a desconstruir.

Algumas feministas não aceitam… sempre veem a religião, o hijab, como algo opressor

Quando eu precisei de acolhimento, assim que eu cheguei ao Islam, eu recorri às pessoas certas, que são pessoas com quem eu tenho vínculos, com quem eu tenho laços até hoje. Algumas dessas pessoas, aliás, estão no CIS,[11] a Jada da Bahia, a Nahid, a Cláudia. Eu não tenho nem palavras pra expressar o carinho, pra expressar o cuidado que essas pessoas, que essas mulheres tiveram pra me acolher, pra me orientar, pra me amar, pra ter esse amor por mim em Allah. E tantas outras mulheres que, meu Deus, eu tenho um orgulho imenso de estar na vida dessas pessoas, como é o caso da Fabíola Oliveira,[12] sempre que a Fabíola precisa fazer algum tipo de trabalho, algum tipo de projeto, uma live, em que a gente possa cada vez mais, sabe, ir contra a maré, ir contra esse sistema e desconstruir essa imagem que eles têm da nossa fé, e desconstruir essa coisa do machismo, do sistema machista patriarcal que impõe isso e aquilo pra gente… Porque a religião é assim e a gente tem toda uma garra e sede de dizer mil vezes que não é isso. A Francirosy,[13] que pra mim é uma referência de intelectual muçulmana. A Karine Garcêz.[14] Eu tenho aqui uma gama imensa de mulheres pra citar, que são mulheres solidárias, que impulsionam as outras, que jogam a outra pra cima, que se doem, que levantam suas bandeiras de luta também e, Alhamdulillah, que o Islam tem mulheres assim, tem mulheres que me representam, que me orgulham. Eu percebo que, do ano de 2019 pra cá, esses laços entre as muçulmanas se fortificaram muito mais. Então existe uma preocupação de você saber que tal irmã está no empreendedorismo, colocou uma loja de produtos islâmicos, está fazendo hijab, está trabalhando com tal coisa. A gente tá sempre buscando fortalecer o negócio da outra, divulgar o trabalho da outra, a produção intelectual da outra, compartilhando nas redes sociais, repostando, lendo o que a outra escreve. Eu acho isso muito bonito. Acho que isso é feminismo, inclusive.

 
 

Fotografia do Instagram

 
 

Eu faço parte do movimento feminista aqui, tenho lutas partidárias, lutas sociais, eu sou integrante da UJS [União da Juventude Socialista], sou presidente da Aliança Palestina no Maranhão, e a gente tem uma parceria com o MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], tenho vários engajamentos, várias bandeiras e ativismos e algumas coisas que me machucam, que me ressentem, que é a questão do movimento feminista, que algumas integrantes não aceitam, algumas sempre veem a religião, o hijab, como algo opressor, e aí a gente tá sempre nessa luta incessante de também pôr por terra essa feminismo de não abraçar a outra, de barrar a outra e de perceber que não é só o machismo, o sistema patriarcal, que oprime uma mulher, mas tem outros critérios, outras questões que também oprimem e que infelizmente as mulheres agenciam esses mecanismos de opressão. Essas mulheres todas que eu citei pra você estão aí, nessa luta pra desconstruir isso.

 

Interessante sua fala a respeito da relação com outras mulheres. Como muçulmano, aprendi no Alcorão, e você me corrija se eu estiver errado, que devemos submissão a Allah, e não a nenhum ser humano, e isso inclui não submissão a homens, de forma que o Islam não é, necessariamente, uma religião patriarcal, no sentido de fortalecer um patriarcado, fortalecer um sistema de dominação masculina. Mas eu tenho a impressão, e você citou alguns movimentos sociais, alguns espaços com os quais você se envolve, de que muitas vezes a pessoa religiosa, e principalmente a muçulmana, acaba sofrendo alguma estratégia de exclusão, de preconceito. Nesses espaços, como tem sido sua vivência? Digo, fora do Islam, as pessoas estão lidando, estão aprendendo com você? Por mais que você não seja uma educadora de sala de aula, você é com certeza uma educadora na vida de muita gente.

Por ocupar vários espaços, eu tenho uma rede de amigos não muçulmanos, de mulheres não muçulmanas. Nessa minha rede de amigos, as mulheres respeitam muito a minha condição. E não só respeitam como também tentam absorver conhecimento. Estão sempre perguntando coisas e pedindo orientações bibliográficas, inclusive, de onde elas podem extrair informações mais precisas. Mas há também aquelas pessoas com quem eu tenho um convívio en passant, que não me conhecem tão bem e de quem, de algum modo, você sente um pouco de resistência, um pouco de preconceito, e que às vezes não te dão tanto espaço pra que você se mostre, pra que você mostre a sua fé, pra que você mostre a que veio. Mas aqui na minha cidade, São Luís, é diferente do eixo Sul e Sudeste, e eu sei disso porque tenho amigas que vivem nesse espaço geográfico do país e que sentem de forma muito ferrenha o preconceito em relação ao Islam. Aqui em São Luís, as pessoas – não me pergunte o exato motivo – são extremamente receptivas. As pessoas se aproximam de mim muito mais por curiosidade.

Eu não me lembro, sendo bem honesta com você, de ter sofrido uma abordagem violenta, uma abordagem preconceituosa. Isso já aconteceu comigo virtualmente, e vindo de pessoas que não eram daqui. Mas aqui de São Luís, não. As pessoas aqui são tranquilíssimas, não existe uma postura de não aceitação. Tem, sim, uma curiosidade, que eu sinto às vezes. Eu vou para o trabalho ou a qualquer outro lugar e percebo isso. Às vezes tiram fotos. Eu não sei como essas fotos correm depois, mas, ao me abordarem de forma direta, não existiu uma situação de preconceito. Nem de violência, nada disso. Eu pego Uber, eu saio e nunca vivi isso na pele. Diariamente eu me preparo para viver uma situação assim, levando-se em consideração o contexto que nós vivemos hoje, que é do conhecimento de todos, a gente vê que a caixa de Pandora se abriu e todo racismo, preconceito, opressão saíram do armário de uma forma abrupta, de vez. Quem era, quem se escondia, já não se esconde mais, mostra a cara e não está nem aí. Mas comigo, Alhamdulillah, não aconteceu. No campo virtual, sim. Geralmente as pessoas se escondem dessa forma, elas são bem covardes, sempre se escondem atrás de um perfil, de uma página, daí começa a te atacar, e começa a proferir palavras extremamente ofensivas. No campo virtual, acho que não teve quase nenhum muçulmano que não tenha passado por uma situação como essa.

Ser religiosa e me cobrir não significa que eu tenha o direito de fazer julgamentos segundo os meus critérios religiosos sobre uma outra mulher que está ali lutando por direitos tanto quanto eu

No movimento feminista, aqui, na minha cidade também, não passei por nenhuma situação em que eu tivesse que debater a questão do movimento feminista, a questão de abraçar a mulher religiosa com seus instrumentos identitários, como é o caso do hijab, de modo que esse movimento entenda que eu, enquanto mulher muçulmana, tenho o direito de me cobrir e nem por isso tenho o direito de oprimir a minha irmã que acha que mostrar os seios é uma forma de resistência. Parto do princípio de que cada mulher, dentro do seu contexto, dentro da sua formação ideológica, tem as suas formas de resistência. Seja com atos, com palavras, com as vestimentas, seja com o que for. Então, ser religiosa e me cobrir não significa que eu tenha o direito de fazer julgamentos segundo os meus critérios religiosos sobre uma outra mulher que está ali lutando por direitos tanto quanto eu. Não, tenho que abraçar. Eu posso não ter os mesmos meios de resistência que ela tem, mas a bandeira de luta dela é a mesma que a minha, a gente quer respeito. A gente quer igualdade, dignidade, proteção. A gente quer equidade. E, muito embora o Islam me garanta isso desde sempre, infelizmente eu vivo numa sociedade que me nega. Então, eu fui pro movimento feminista pra resgatar aquilo que Deus já me deu há muito tempo. A gente sempre tá nessa discussão, nesse sentido, de mostrar que coberta ou despida nós lutamos pelas mesmas coisas. Mas o confronto direito dentro do movimento, aqui em São Luís, ele nunca houve. Eu me ressinto do movimento no geral, sobretudo nos debates virtuais. Como a gente está nessa época de pandemia e as coisas estão se dando muito nesse campo virtual, isso aflora muito mais. Os meus embates ainda estão nesse campo virtual. E vou ser bem honesta, eu torço pra que esse embate vá mesmo para o corpo a corpo, eu quero me encontrar numa situação de confrontamento, em que eu possa encontrar uma pessoa que tenha uma ideia e que eu tenha o poder, no sentido positivo, de desconstruir e de mostrar pra ela que ela pode segurar na minha mão mesmo ela sento diferente de mim.

É lógico que tem algumas situações muito sutis em que você sente uma resistência. Eu faço parte, por exemplo, de um grupo de poetas aqui da minha cidade. Não que eu tenha uma produção nessa linha, mas eu arrisco escrever uma coisa ou outra. Eu tenho amigos nesse grupo que têm uma admiração imensa pelo Islam, e são pessoas que inclusive fazem parte da Aliança Palestina, e eles sempre dão muito estímulo pros meus trabalhos, sempre estão ali me impulsionando e, quando eu escrevo algum artigo, quando algum trabalho é publicado, eles sempre vão e compartilham no grupo. Aí, é lógico que a gente percebe que não existe aquela receptividade por parte de algumas pessoas, de algumas mulheres, e como é um grupo muito diverso, tem pessoas ali que provavelmente são de direita, provavelmente são pessoas muito conservadoras. Eu vejo algumas postagens muito religiosas, de católicas, e algumas postagens que vejo ali nas entrelinhas um quê de sionismo também, e, nessas situações, nesses eventos que também já tive a oportunidade de presenciar, eu consigo sentir essa rejeição, esse não acolhimento, mas de uma forma sutil, de uma forma bem velada, nada explico. Aquela coisa de que “ah, não vamos divulgar isso aqui dela, não vamos dar ênfase pra isso aqui dessa pessoa”. Essas coisas acontecem. Às vezes, fica até meio confuso, até que ponto isso é resultado de um preconceito contra a religião ou se é uma questão mesmo da não sororidade que existe entre essas mulheres, de não serem solidárias com todas, se é aquele espírito de competitividade. Infelizmente, isso é muito alimentado na nossa sociedade, e é uma coisa que sinto que nós combatemos. Nós, mulheres muçulmanas, procuramos combater essa coisa da competitividade, essa coisa da não solidariedade uma com a outra, mas infelizmente a gente tem que lidar com isso, tem que conviver e ter jogo de cintura. E tem que ter fortaleza pra poder passar por esses desertos.

 

Pois é, você mencionou isso a respeito do Sudeste, do quanto aqui o preconceito é muito diferente. Mesmo que haja espaços que são acolhedores, acaba tendo um pouco dessa manifestação de distanciamento. Por um lado, fico feliz em saber que não é assim em todo o Brasil; por outro, me entristece que nem todas as pessoas estejam dispostas a estar nesse espaço de enfrentamento e a dialogar. E uma dessas principais formas de exclusão que você abordou, e a gente acaba identificando, é essa coisa do espaço de trabalho. Você falou que teve questões relativas, que teve também espaço para continuar desempenhando seu trabalho, mas, no geral, como você enxerga essa questão para as mulheres muçulmanas? Nesse espaço, que a gente sabe que é disputado, as pessoas entram num pensamento neoliberal de tentar a todo custo ter sucesso, enquanto no Islam a gente tem uma questão de irmandade e de união que é bem diferente dessa lógica de competição. Como você vê isso, considerando a sua experiência e a das irmãs que você conhece?

Na área de história, eu atuei muito fortemente na pesquisa. Eu trabalhei no Arquivo Público do estado, na confecção de instrumentos de pesquisa, na transcrição de documentos, na catalogação e digitalização de documentos. Posteriormente, fui trabalhar na Superintendência de Patrimônio Histórico e Cultural do Maranhão, onde fui coordenadora do projeto Livros da Câmara de São Luís, em que trabalhei com publicações do século XVII, coordenando uma equipe emque nós tínhamos dois pesquisadores e quatro estagiários. Foi um projeto muito importante pra área de patrimônio aqui. Infelizmente, ele não teve continuidade porque houve uma transição de governo, via golpe. Minha equipe saiu e eu, mesmo não sendo uma indicação partidária, eu era indicação técnica, eu saí também. O projeto ficou jogado, infelizmente, muito triste isso, mas vamos deixar essa questão de lado um pouco.

A sala de aula foi uma situação, um espaço que eu deixei de ocupar por causa de uma depressão que eu tive. Culminou com várias coisas, teve a morte do meu pai, enfim… Isso acabou tirando as minhas forças. E também porque foi numa época em que eu ensinava numa escola, num bairro de periferia aqui de São Luís, a escola Domingos Vieira Filho. É uma escola que se situa num município da capital, da grande São Luís, e ela tá ali pegando um público de várias periferias desse local, periferias rasgadas mesmo, sabe, de realidades muito duras, de contextos muito sofridos. E eu ia dar aula pro ensino médio e era um misto de medo e tristeza ao mesmo tempo.

O hijab é símbolo da minha conexão com Deus. Acima de qualquer outro valor que ele agregue, ele é símbolo da minha ligação com Allah… e também é símbolo da minha resistência, porque eu quero ser identificada enquanto mulher muçulmana

Nessa época eu ainda não tinha adotado o hijab. Então ainda era mais fácil transitar no espaço da educação. Eu tinha medo porque alguns dos meus alunos já estavam envolvidos em um contexto de criminalidade, infelizmente, e me angustiava muito ver aquela situação e ver a mim mesma, enquanto educadora, internalizar a ideia de que não poderia fazer muita coisa, pois eu estava tão desacreditada que eu achava que o meu trabalho não ia mudar a vida de nenhuma daquelas pessoas. Isso porque elas já estavam tão submersas nesse contexto de criminalidade, de drogas, de famílias em que o pai estava preso, a mãe no alcoolismo e na prostituição, enfim… Eu olhava aquilo tudo e era desesperador pra mim. Eu dizia “Meu Deus, o que eu vou fazer? Como eu vou ajudar?”. E tudo isso foi contribuindo, fora as questões pessoais que me arrastaram para esse processo de depressão, que me afastou de sala de aula, e que, quando eu me recuperei, eu não tive a coragem, eu me acovardei mesmo pra retornar, pra ocupar novamente esse espaço.

Teve uma questão muito crucial na minha decisão de não retornar. Eu não sei como é o mercado educacional fora do estado do Maranhão, mas eu posso falar pelo meu estado, eu posso falar pela realidade desse mercado aqui em São Luís e que é dominado pelos evangélicos. O mercado educacional, as escolas particulares e públicas vivem essa dominação. Eu, nesse momento da minha vida, como mulher muçulmana extremamente segura e entendedora daquilo que significa usar o hijab, que é símbolo da minha conexão com Deus acima de qualquer outro valor que ele agregue, ele é símbolo da minha ligação com Allah, da minha obediência a Deus, ele também é símbolo da minha resistência, porque eu quero ser identificada enquanto mulher muçulmana, e isso nem sempre é entendido pelas pessoas que estão na gestão do mercado da educação. Então, é uma coisa que me desmotiva a retornar. Ao mesmo tempo, eu me cobro muito de ter que ter coragem pra enfrentar e impor a minha figura, a minha presença. Porque é preciso. É preciso que não só eu, a Gilliam, professora, muçulmana, esteja presente no espaço da educação, mas como a umbandista, a judia, a budista, qualquer fé que esteja manifestada no indivíduo que esteja capacitado pra atuar enquanto professor, enquanto educador. É necessário que a gente lute por esse espaço e eu não tive essa fortaleza pra fazer isso.

As mulheres muçulmanas que vêm de uma realidade menos sofrida nesse país têm oferecido solidariedade, força pra compartilhar com aquelas que vivem nesse contexto de marginalização

Hoje eu já consigo recuperar o meu fôlego pra me reconfigurar pra essa luta. Então, eu tive que descobrir outras habilidades pra voltar ao mercado de trabalho. Hoje eu atuo na gestão de estabelecimentos que trabalham com comida. E aí, claro, eu tive que adquirir conhecimento na área, de padrões de manipulação alimentar, de tudo que é pertinente a essa área. É uma área que eu gosto, porque é uma área que me acolheu também. Por incrível que pareça, as empresas que me contrataram não foram preconceituosas com a minha condição de muçulmana. Eu fui fazer entrevista de hijab, eu participo de reuniões com hijab, eu participo de treinamentos com hijab. e então, não tem como não criar amor por isso, sendo que foi um setor que me acolheu.

Claro, tem vários fatores dos quais eu discordo no que se refere às relações de trabalho, à relação empregado-empregador, mais-valia e exploração e por aí vai. Mas, nesse outro aspecto, eu agradeço pela possibilidade de ter adentrado esse espaço. Devo isso também à minha coragem de me impor, de chegar, de fazer entrevista, de mostrar que eu tinha competência, que eu estava preparada pra tal função. E a forma como eu me coloquei pra essas empresas foi uma forma tão positiva que eu acho que eles não observaram se eu usava hijab ou não. Isso pra mim foi muito bom. Mas eu entendo como é difícil e espinhoso pra uma mulher muçulmana encontrar um espaço no mercado de trabalho, e isso implica em vários desdobramentos. É desemprego, passar por aperto, e isso mexe com o psicológico, mexe com aquela coisa de que você está improdutiva, se sente muitas vezes incapacitada, imagino, pras mulheres que passam por isso, que ficam à margem, muitas são obrigadas a tirar o hijab e tiram mesmo, e isso abala até a fé da pessoa. São muitas implicações que esse fechamento, essa negatividade do mercado de trabalho para nós, mulheres muçulmanas, traz pras nossas vidas, que vai desde o aspecto econômico, da questão financeira, do sustento familiar, até o psicológico.

 
 

Em reunião da Aliança Maranhense de Solidariedade à Palestina. Fotografia do Instagram

 
 

Esses pontos que você abordou são muito impactantes, significativos na vida das pessoas, a questão do trabalho, que tem a ver com a autonomia, com o sentido da nossa vida. Ser docente no Brasil não parece ser tranquilo em lugar nenhum, eu sou professor e imagino. A gente tem muitos educadores que estão adoecendo mentalmente, e é emotivamente e afetivamente desgastante educar. As pessoas dizem que é uma missão, e mas eu não enxergo assim. Tem uma dimensão de formação, de ação prática, ninguém tem dom pra dar aula. A gente aprende a dar aula, se forma como profissional. Mas ao mesmo tempo eu fico pensando, você falou que as muçulmanas acabam compartilhando a produção umas das outras, os seus trabalhos. Você vê alguma iniciativa que acha digna de nota nesse sentido, ou você tem algo a sugerir, alguma ideia com relação a como muçulmanas e outras pessoas podem agir para que não haja esse tipo de entrave no mercado de trabalho?

Infelizmente, os entraves no mercado de trabalho que as mulheres de um modo geral encontram, em particular as mulheres muçulmanas, existem por questões muito profundas. Pelo próprio sistema machista a patriarcal, isso já traz uma série de fatores, de mecanismos opressores que nos colocam fora do mercado de trabalho ou numa condição desigual no mercado de trabalho. Quando a gente parte pra um aspecto mais particularizado, como o aspecto religioso, e aí, no caso, aquilo que nos toca enquanto mulheres muçulmanas, nós ficamos fora do mercado, é o preconceito, lógico. Pporque as pessoas tentam impor aquela ideia de que você tem que se adequar aos padrões que o Ocidente nos impõe, que a sociedade nos impõe, você tem que andar com tal vestimenta, andar com o cabelo assim, a roupa assado, e isso acaba confrontando com os seus princípios e critérios. Então, isso já nos marginaliza, já nos coloca à margem dos processos.

E tem a questão da qualificação também. Eu tenho consciência daquilo que eu sou, do meu lugar de fala, dos espaços que eu consigo ocupar, então, quando falo de preconceito, eu falo de um preconceito brando. Porque eu sou branca. Eu tenho uma formação superior, eu tive oportunidade que minha família pôde me proporcionar. O preconceito que eu sofro é infinitamente mais brando do que o preconceito que aquela minha irmã que é muçulmana e é negra sofre, e que aquela que também não teve oportunidade de avançar nos estudos sofre, porque veio de uma condição periférica e sofre bem mais do que eu. Isto acho muito bonito no Islam: as mulheres muçulmanas que vêm de uma realidade menos sofrida nesse país têm oferecido solidariedade, força pra compartilhar com aquelas que vivem nesse contexto de marginalização, não só pela religião, mas por todas as demais implicações que ela traz na vida, que é a cor, que é a condição social, a escolaridade, enfim. Tudo isso coloca essas mulheres à margem do mercado de trabalho. Como tratar isso, como tratar essa ferida? É muito complicado.

É um processo complexo, é um processo longo que a sociedade ainda não está disposta a sanar. E quando eu falo sociedade eu falo tanto de poder público quanto de sociedade civil, as pessoas não estão preparadas e não querem sanar diferenças sociais, não querem sanar os preconceitos, as fobias. Esses processos de desconstrução são bem vagarosos, bem morosos, e têm que partir de nós enquanto potência individual. Inclusive fiz um storie no meu Instagram quanto a isso, a gente tem que se ver enquanto potência individual, de cobrar determinadas coisas nos lugares que a gente ocupa. Se você usa um produto x, se eu sou cliente de uma empresa que fabrica, sei lá, um perfume, um hidratante, e eu gosto muito daquele produto, por que que eu não posso mandar uma mensagem, por que que eu não posso cobrar dessa empresa uma representatividade? “Olha, eu sou a Gilliam, sou muçulmana, eu sou cliente de vocês há tantos anos, eu utilizo tal produto, eu gosto da empresa de vocês por isso e por isso e por isso, será que vocês não poderiam pensar numa campanha publicitária que me contemplasse, que me representasse enquanto mulher muçulmana? Não sou só eu que uso, tenho várias amigas que usam.” Sabe, se cada pessoa fizesse isso… “Eu vou num restaurante assiduamente, eu gosto muito da comida daqui, eu nunca vi nenhum muçulmano trabalhando aqui, será que existe alguma política da empresa que barra as pessoas nos processos seletivos por questões religiosas? Ah, eu estou na universidade, eu estou aqui ha tantos períodos, eu não vi nenhum professor muçulmano aqui, por quê?”

Então, quer dizer, o nosso dinheiro circula nesses locais, nesses espaços, mas a gente não tem essa postura de cobrar que os nossos irmãos estejam inseridos nesses processos. Se cada um, individualmente, começar a fazer essas cobranças, isso se torna uma potência coletiva. Essas pressões que talvez a gente ache que não adiantam muito, elas podem surtir um efeito no longo prazo. Posso, de repente, de tanto cobrar, de estar pentelhando ali com outras pessoas, de tanto reivindicar a presença de uma representatividade na qual eu me veja, isso pode começar a abrir espaços no mercado de trabalho, na sala de aula, nas campanhas publicitárias etc. e então, talvez comece a partir daí. A gente não pode esperar só diretrizes e políticas que venham de cima para baixo, porque isso é bem difícil de acontecer, sobretudo no contexto que a gente vive hoje. A gente tem que começar a ter posicionamentos individuais também.

 

Insh’Allah essas mudanças ocorram e que nossa conversa seja um passo nesse sentido. Espero que as pessoas que estejam lendo essa entrevista possam aprender um pouco, meditar melhor sobre como encaram a mulher muçulmana, como que convivem com ela dentro de suas próprias consciências e, mais do que isso, como convivem com essas pessoas na sociedade em que estão inseridas. Agradeço muito que você aceitou compartilhar conosco a sua história, que Allah lhe retribua muito.

Também queria agradecer a oportunidade de expor a minha experiência no Islam, a minha experiência enquanto mulher, enquanto alguém que é ativa socialmente, é militante, trabalha, ajuda nos contextos sociais no que é possível, que está sempre tentando combater todos os tipos de preconceito. Não só o nosso quadrado, né? Porque, quando você se concebe como uma pessoa humanista, você tem que ter uma visão de trezentos e sessenta graus, de olhar pro mundo, e aí tem muita, muita questão, muita coisa pra ser combatida, e eu acho que o Islam traz essa consciência. O contexto de luta social ficou muito mais aguçado depois que eu me reverti, porque é uma jihad constante você lutar por justiça social. Eu fico imensamente feliz pela oportunidade, Alhamdulillah por ter a oportunidade de mostrar, de falar para as pessoas. Eu espero que realmente que aqueles que tiverem a possibilidade de acessar esse material, que possam desconstruir seus preconceitos e ter uma outra visão de nós mulheres muçulmanas, do Islam como um todo. É isso. Assalam alaikum.

 

Wa alaikum salam.

 

Felipe Souza é doutorando em Ciências Socias pela Unesp, campus de Araraquara. Formado pelo Instituto Latino-Americano de Estudos Islâmicos, é também membro do Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes (Gracias), da USP de Ribeirão Preto, e do Núcleo de Antropologia da Imagem e Performance (Naip) da Unesp, além de professor da rede municipal de Araraquara.

 

Notas

[1] No Islam, costuma-se usar a expressão reversão, e não conversão, para identificar o momento em que uma pessoa se torna muçulmana. Isso porque todos nascem muçulmanos. Tornar-se muçulmano é, então, um retorno àquilo que se é originalmente.

[2] Mantivemos a grafia da palavra “Islam” com “m”, como proposto pelo autor, por ser a forma transliterada mais próxima da grafia árabe (السلام). [N. E.]

[3] Cumprimento usual entre muçulmanos, significa “que a Paz esteja convosco”.

[4] Resposta ao cumprimento Assalam alaikum. Significa “e a paz esteja convosco”.

[5] A dawah é compreendida como a “divulgação da religião”. Não é sinônimo de proselitismo, uma vez que o objetivo final não é arregimentar fiéis para o Islam, mas esclarecer não muçulmanos e mesmo muçulmanos acerca da religião.

[6] Expressão que significa “graças a Deus”.

[7] A Revolta dos Malês é o nome dado a um levante de escravos, majoritariamente muçulmanos, ocorrida na Bahia em 1835.

[8] Shahada, nesse contexto, é a declaração de fé pública que faz com que uma pessoa seja compreendida como muçulmana. Consiste, sinteticamente, em dizer em árabe que “Não há divindade além de Allah” e que “Muhammad é Mensageiro de Allah”.

[9] O hijab é, bem grosso modo, o véu. Mas certamente não se resumo ao tecido.

[10] Expressão em árabe que significa “o Mais Glorificado, o Altíssimo”.

[11] Comitês Islâmicos de Solidariedade.

[12] Instagram: @fabiolaoliver.

[13] Instagram: @dra_francirosy_campos.

[14] Instagram: @karine.garcez.

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Cartas na mesa #7

É mais difícil sorrir quando se está sendo vigiado. Em tempos de arapongagem do Ministério da Justiça, brigas entre a Procuradoria-Geral da República e a força-tarefa da Lava-jato a respeito de informações de investigados e bloqueio de contas de apoiadores do governo nas redes sociais, dá pra perceber que o tema que envolve dados e privacidade é uma das questões fundamentais da política em tempos de redes sociais. Por isso, neste episódio a trupe do CNM discute a fundo os vínculos entre essas esferas e quais os possíveis cenários daqui em diante.

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Ouça os episódios anteriores

Cartas na Mesa #006 – Meio ambiente: entre a política e a ciência

Cartas na Mesa #005 – Educação pública na pandemia

Cartas na Mesa #004 – Trabalho e trabalhismo no Brasil

Cartas na Mesa #003 – Polícia violenta e bandeiras da esquerda

Cartas na Mesa #002 – O racismo explícito na política e a covid-19 nos presídios

Cartas na Mesa #001 – A prisão do Queiroz e seus desdobramentos

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Cartas na Mesa #6

Ricardo Salles balança mas não cai. Enquanto isso, a boiada vai passando, com o aumento do desmatamento, das queimadas e o descaso geral com o meio ambiente. A ação do governo nessa área parece se resumir a uma questão de prioridades: primeiro a economia. Porém, sustenta essa visão um misto de discurso anticiência e de negacionismo climático que resume a relação geral do bolsonarismo com a verdade, os fatos e os dados.

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O vírus atrás das grades

• Ouça o episódio de Cartas na Mesa sobre covid-19 nos presídios, com o depoimento de Luiz Eduardo Rossini.

Numa terça-feira normal, Luiz Eduardo Rossini teria acordado às 4h30 da manhã, tomado banho, preparado o café e entrado em seu carro para começar a percorrer os cerca de vinte quilômetros até a Penitenciária II de Sorocaba, onde trabalha como psicólogo desde fevereiro de 2020. Mas naquela terça-feira ele ficou em casa: tinha testado positivo para a covid-19 e estava de quarentena. Luiz tem 37 anos, é natural de Sorocaba e se formou em psicologia pela Universidade Estadual de Londrina, no Paraná. Foi na faculdade que conheceu a esposa, Eloísa, três anos mais jovem e também psicóloga. O casal tem uma filha, Ana Beatriz, de treze anos, e foi no quarto dela que Luiz se instalou após a confirmação de que tinha se infectado com o novo coronavírus. A filha, por sua vez, passou a dividir com a mãe o quarto do casal.

Ele trabalha no sistema prisional paulista já há pouco mais de sete anos, mas até então estava lotado no Centro de Detenção Provisória (CDP), no mesmo município. O motivo para acordar tão cedo é que ele entra na penitenciária às seis da manhã. Ao meio-dia, encerra o expediente, almoça ainda no presídio e depois dirige mais trinta quilômetros, até o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) de Iperó, uma cidade vizinha, onde ele trabalha como coordenador. Concluída a segunda jornada de seis horas, ele enfim pega a estrada de volta para casa.

São poucos os funcionários do seu entorno que entram no mesmo horário que ele no presídio. Por isso, Luiz passa os primeiros momentos do dia trabalhando sozinho na sala da equipe de reintegração, da qual faz parte. Rose, uma senhora magra e baixa, de cabelos grisalhos curtos e óculos de lentes grossas, é a oficial administrativa, e costuma aparecer por volta das 6h40 – embora seu expediente só comece de fato às sete. Quando Daniela, a diretora do departamento, chega ao escritório, às oito, a equipe de reintegração está completa.

Em 1990, quando foi inaugurada, a Penitenciária II – ou P2, como costuma ser chamada – era um presídio de segurança máxima, com uma capacidade bem reduzida, para apenas quinhentos presos, como ocorre ainda hoje com esse tipo de presídio no estado de São Paulo. Com o tempo, esse perfil foi se alterando, até que, no início dos anos 2000, ela foi transformada em uma unidade restrita aos condenados por crimes sexuais.

A superlotação fica aparente nas celas, onde 20 a 30 pessoas dividem o espaço originalmente reservado a 8 ou 10

De acordo com dados da Secretaria de Administração Penitenciária, no dia 21 de julho de 2020 sua população total era de 2.087 presos, sendo 1.768 no regime fechado e 319 no semiaberto, ainda que sua capacidade total seja de apenas 935 detentos. A superlotação fica aparente nas celas, onde 20 a 30 pessoas dividem o espaço originalmente reservado a 8 ou 10. Segundo Luiz, “eles são organizados e, na medida do possível, tentam deixar o espaço limpo, porque é o ambiente deles”. Mesmo assim, é difícil manter as condições de higiene. O banho gelado, por exemplo, não é um grande incentivo ao asseio pessoal, e o cheiro que emana das celas é descrito como uma mistura de comida, lixo e suor.

O fato de a unidade ser reservada a condenados por crimes sexuais também lhe confere certas características que, no contexto da pandemia, influenciam na comorbidade dos presidiários. A idade média dos presos que chegam lá é de 30 anos e, como os crimes de agressão sexual têm punições legais bem severas, e não raro são cometidos mais de uma vez pelo criminoso, a somatória das penas costuma alcançar entre 15 e 20 anos de regime fechado e mais alguns de semiaberto. Ou seja, a população da unidade é mais velha e, em decorrência da idade, portadora de outras doenças – de acordo com um levantamento do presídio, cerca de 25% dos presos ali se enquadram no grupo de risco. “Só nesses poucos meses em que estou no cargo, já entrevistei um [preso] cego, dois cadeirantes, um outro com Alzheimer já bem avançado, outro com surdez quase total”, contou Luiz. Um fato curioso é que, nessa unidade, alguns detentos mais jovens acabam trabalhando como cuidadores dos mais velhos e, com isso, conseguem a remissão de parte da pena.

O trabalho de Luiz na penitenciária, desde que chegou, em fevereiro, tem se resumido à realização de exames criminológicos, que são solicitados pelos juízes para averiguar a possibilidade de progressão de regime dos presos. Antes da pandemia, e da consequente mudança dos protocolos, ele atendia cerca de oito detentos por semana. Além da entrevista, há a aplicação de um teste e, depois, a leitura do prontuário do preso e a discussão do caso com a equipe para, então, produzir o relatório que será encaminhado ao juiz. Com a adoção das medidas de biossegurança, houve uma pequena redução no número de entrevistas para seis por semana, em média, e elas se davam com o devido distanciamento e os equipamentos de proteção, incluindo o face shield, o escudo de acrílico que cobre todo o rosto.

Nas entrevistas, Luiz aborda o contexto familiar desses sujeitos que tiveram sua liberdade cerceada, se mantêm contato com pais, irmãos, companheira(o), se recebem visitas, trocam cartas etc. Para os que estão no semiaberto, ele questiona, entre outras coisas, se fazem saídas temporárias, se trabalham ou estudam. E, obviamente, Luiz interpela a todos, independentemente do regime, a respeito de seus crimes. “Alguns optam por não contar nada, em geral por constrangimento, porque ali são crimes sexuais. Mas é fundamental procurar entender que tipo de reflexão eles fizeram enquanto estiveram presos e o que pretendem mudar na vida e no comportamento deles para evitarem cometer outro crime futuramente”, revelou.

Luiz tem, portanto, uma boa noção do que pensam e de como se sentem os detentos durante a pandemia – e a pandemia mudou completamente o cotidiano da unidade. Houve a suspensão das saídas temporárias, as chamadas “saidinhas”, e o trabalho externo dos presos do semiaberto também foi interrompido. As celas são borrifadas com uma solução de cloro e amônia e, nos espaços fora delas, como o pátio, tornou-se obrigatório o uso de máscaras. Para os funcionários, todas as salas são higienizadas várias vezes por dia.

Como há mais de oitenta celas, o revezamento pode deixar o preso dois ou três dias sem o banho de sol

Algumas medidas adotadas, no entanto, tiveram grande impacto nos detentos, em termos tanto físicos quanto psicológicos. Para evitar aglomerações, houve redução do tempo de banho de sol, que passou a ser feito em rodízio, com uma cela por vez, durante apenas uma hora. Como há mais de oitenta celas, o revezamento pode deixar o preso dois ou três dias sem o banho de sol. Assim, a angústia deles aumenta na proporção que diminuem seus níveis de vitamina D, e até mesmo a questão da higiene é afetada. Isso porque é durante os banhos de sol que as celas são limpas: enquanto a maioria dos presos sai, permanecem na cela dois ou três deles responsáveis pela faxina. Agora, como o banho de sol demora mais para ocorrer, fica mais difícil manter o asseio do ambiente com todos lá dentro.

Várias dessas medidas se encontram na portaria 135, de 18 de março de 2020, assinada pelo então ministro da Justiça Sérgio Moro. Além de suspender as visitas e saidinhas, a portaria sugeria, ainda, conforme nota no site do Ministério, que o regime domiciliar deveria “ser concedido apenas aos presos que se enquadram legalmente ao regime, que tenham estrutura familiar, com o devido monitoramento da pena por meio das tornozeleiras eletrônicas”. Nesse sentido, a portaria era uma resposta à recomendação nº 62/2020 do Conselho Nacional Justiça (CNJ), emitida no dia anterior e que orientava os magistrados a reavaliar “prisões provisórias, especialmente quanto a grupos mais vulneráveis (como mães, portadores de deficiência e indígenas) ou quando o estabelecimento estiver superlotado ou sem atendimento médico”, além de recomendar, também, “a reavaliação de prisões preventivas com prazo superior a noventa dias ou que resultem de crimes menos graves”. Para um governo que sempre defendeu a morte de bandidos, a pandemia não podia ser desculpa para impunidade.

O veto às visitas, que também estão temporariamente proibidas, foi o que mais impactou os detentos. Segundo Luiz, “individualmente, nos atendimentos que faço nessas avaliações, dá pra ver que eles têm sentido mais a falta da família. E talvez a ausência de atividades mesmo. Uma parte trabalhava, estudava ou fazia alguma atividade física, e tudo isso deixou de acontecer”. Dessa forma, o único meio de manterem contato com o mundo exterior é através das cartas, que passaram a ser trocadas com mais frequência.

Até o dia 14 de junho de 2020, a P2 havia contabilizado catorze casos de covid-19, sendo metade destes entre os presos e a outra metade entre os funcionários. Todos foram considerados graves em alguma medida, o que demandou que fossem testados. Dos detentos, três vieram a óbito durante a primeira quinzena de abril. Por ter sido a primeira penitenciária do estado a registrar mortes pela covid-19, a unidade foi escolhida para um projeto piloto de testagem em massa, realizado por meio de uma parceria do governo do estado com o Instituto Butantã. Entre os dias 15 e 19 de junho, todos os presos e funcionários foram testados. E assim as estatísticas saltaram: constatou-se que 40% dos detentos estavam infectados pelo novo coronavírus, além de dezessete funcionários, que foram logo afastados – entre eles, Luiz.

Em abril, Luiz havia desenvolvido alguns sintomas, como febre alta, dor de cabeça e dor no corpo. Ao procurar uma médica, ouviu dela que, de acordo com o protocolo então adotado, por não ter desenvolvido nenhuma disfunção respiratória, ele não seria testado para covid-19 naquele momento. A médica solicitou testes de dengue, que deram negativo. Como que por exclusão, ela diagnosticou o quadro de Luiz como de H1N1, mesmo sem nenhum exame que o comprovasse.

Na terça-feira, 16 de junho, Luiz trabalhou até as oito da manhã, então desceu até o andar onde estavam sendo feitos os testes. “Foi meio enrolado, porque tinha muita tecnologia envolvida, tinha gente do Instituto Butantã, os estudantes de enfermagem da Etec [Escola Técnica Estadual] de Sorocaba, tinha gente do laboratório que cedeu a tecnologia, o pessoal da coordenadoria da Secretaria de Administração Penitenciária, nossos superiores que ficam em Campinas ou em São Paulo… Como era um projeto piloto, uma novidade, tinha gente de tudo quanto é lugar”, disse Luiz. Havia toda uma série de procedimentos que tinham de ser realizados todos os dias antes da testagem: preparar as salas, ligar os computadores, conectar o sistema com o do laboratório, tirar as centenas de testes das embalagens etc. Por isso, Luiz só conseguiu ser testado às nove da manhã.

“Então, voltei para a minha sala, fui fazer os atendimentos dos presos do semiaberto e, quando terminei tudo, recebi o resultado por e-mail, umas três horas depois de ter feito o teste. Eu tinha reagido positivamente ao teste de anticorpos. Fiquei um pouco surpreso, mas não em choque, porque já havia aquela suspeita quando eu tinha sido diagnosticado com H1N1 sem ter feito nenhum exame. Mas não deixa de ser impactante quando você recebe a confirmação”, declarou Luiz.

Depois de ver o resultado, ele deixou recado para sua superior de que havia testado positivo para o vírus. Mais tarde, ela lhe informou por WhatsApp que ele deveria passar em um hospital para pegar o atestado médico que lhe garantiria sair de quarentena. “Naquele dia, ainda fui trabalhar em Iperó. Lá, seguimos o protocolo de distanciamento, mas o pessoal ficou um pouco assustado. Foi só depois que saí do Creas que fui para o Hospital Modelo. Ali, fiquei com outros pacientes no espaço chamado de ‘setor da covid’. Tinha muita gente nesse dia, e fui sair de lá quase meia-noite”, reclamou.

Chegando em casa, a rotina familiar teve de ser alterada imediatamente. Adaptaram tudo, os banheiros, os quartos e as partes dos cômodos que ele poderia usar para manter a distância necessária da filha e da esposa. Elas não chegaram a ser testadas, mas não desenvolveram nenhum sintoma. Como precisou ficar em casa para cumprir a quarentena, Luiz não acompanhou a reação dos presos após a testagem e a constatação de que quase metade deles tinha contraído o vírus. Ele retornou ao trabalho no dia 30 de junho e retomou a rotina de entrevistas, agora menos paramentado – protegido apenas com máscara e luvas.

Há entre os presos religiosos o sentimento de que o vírus pode ser vencido pela fé

Uma boa parte das celas tem aparelhos de TV, mas os presos dão preferência às novelas e aos programas religiosos, em detrimento dos noticiários. Por isso, as informações sobre a pandemia se resumem ao que é passado pelos funcionários ou ao que chega pelas cartas e então circula entre pelo presídio. Para Luiz, mesmo quem não era religioso antes de entrar na prisão acaba se tornando lá dentro, pois “é uma questão de sobrevivência”. E a religião pode ser um fator que explica a não tão grande preocupação dos detentos com a covid-19: há entre os presos religiosos o sentimento de que o vírus é algo que pode ser vencido pela fé, enquanto outros podem acreditar que, por estarem ali confinados, estão mais seguros, como explicou Luiz.

Mas nem todas as penitenciárias adotaram as mesmas medidas. O Centro de Detenção Provisória (CDP), onde Luiz trabalhava anteriormente, por exemplo, demonstrou certo descaso com a pandemia. “Conversei com a assistente social e a psicóloga que continuam atendendo lá. Elas estavam bem insatisfeitas com a condução da crise na unidade, principalmente com relação às questões de biossegurança”, disse ele. No CDP, o potencial de mortalidade do vírus foi minimizado, talvez ecoando o ponto de vista do governo federal, e assim os atendimentos dessas funcionárias continuaram a todo vapor. Como ambas têm mais de cinquenta anos, elas tiveram de dar um jeito de se afastar do trabalho, para proteger a família e elas mesmas.

No dia 9 de julho, o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), João Otávio de Noronha, atendeu ao pedido da defesa do ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro, Fabrício Queiroz, para que este cumprisse prisão domiciliar. Um dos argumentos seguia a linha da recomendação emitida pelo CNJ a respeito do contexto da covid-19, uma vez que Queiroz tem outros problemas de saúde. O benefício se estendeu ainda à esposa dele, que estava foragida. Márcia Aguiar pôde, então, “cuidar do marido” em casa, como sugeriu o ministro que lhe concedeu a prisão domiciliar. Sobre Noronha, o presidente Bolsonaro já havia dito, em certo momento, que se tratava de “amor à primeira vista”, e não falta quem sugira que uma das próximas vagas do Superior Tribunal Federal (STF) será destinada a ele.

À luz da preocupação humanitária demonstrada pelo presidente do STJ com relação à família Queiroz, no dia 10 de julho o Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu) impetrou um habeas corpus coletivo que beneficiaria pessoas de grupos de risco detidas por crimes sem violência, em consonância com a recomendação do CNJ. Em 23 de julho Noronha negou o pedido. Dessa vez faltou o amor.

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Celso Furtado: o economista e o subdesenvolvimento

A cidade de Pombal, na Paraíba, foi assim nomeada em homenagem ao nobre português – Sebastião José de Carvalho e Melo, o marquês de Pombal –, cuja parte da linha de ascendência remete aos índios Tabajaras, habitantes dessa região. Mas, se o rei d. José I, ao criar a Vila de Pombal no Brasil, homenageou um dos grandes homens com raízes profundas naquela terra, a mesma cidade paraibana, em uma dessas surpreendentes coincidências da história, generosamente agraciou nosso país, há cem anos, com um dos mais ilustres cidadãos que o Brasil moderno produziu.

Celso Monteiro Furtado começava, em 26 de julho de 1920, uma vida que seria profundamente dedicada ao país. Quando jovem, sonhava em ser um literato, mas acabou por reconhecer-se em uma missão: “captar o essencial da realidade através da análise […], transformar o mundo real em exercício mental”, como ficou registrado no documentário O longo amanhecer (2004). Seus companheiros da Comissão Econômica para América Latina (Cepal) – órgão da ONU que ajudou a estruturar – o reconhecem também como um contribuidor essencial, no sentido estreito da palavra, por ancorar as bases desse pensamento cepalino, de emancipação do continente. Ao contrapor uma visão absoluta de desenvolvimento, a Cepal destravou o progresso econômico de muitos países da região e estabeleceu um novo paradigma de desenvolvimento a partir de meados do século passado.

Com relação ao papel de Celso em seu governo, Juscelino teria dito simplesmente: “Só me arrependo de não tê-lo chamado mais cedo”

Se sua contribuição para o pensamento econômico mundial é notória, seu interesse pelo Brasil é primário e absoluto. Ao lado de Sérgio Buarque, Gilberto Freyre e Caio Prado, Celso conseguiu sintetizar grandes questões sociais brasileiras, com uma abordagem economicista que ia muito além da pura alocação de recursos escassos: ele se preocupou com toda a organização socioinstitucional que se ancorava nessa problemática. Em sua obra mais difundida, Formação econômica do Brasil – ou simplesmente FEB, como é chamado nos cursos de ciências sociais país afora, onde continua a ser leitura obrigatória –, Furtado faz uma análise estrutural dos ciclos econômicos do país. Fortemente influenciada pela leitura que o economista fez de Karl Mannheim, a obra visa capturar os caminhos para uma teoria desenvolvimentista genuinamente brasileira. Para Fernand Braudel, o grande historiador francês à frente da escola de Annales, a força criativa do FEB o coloca entre as grandes obras do pensamento econômico moderno, para além das fronteiras brasileiras.

Assim como Mannheim, Furtado tinha uma preocupação pragmática com a construção da intelligentsia, e desse modo rejeitava de pronto tanto uma solução liberal clássica de desenvolvimento quanto a proposta revolucionária do marxismo para o Brasil – falsos dilemas que, sessenta anos depois, ainda pautam a discussão política em nosso país. Celso faleceu em um momento em que o planejamento econômico começava a perder força e, assim, o economista que fora duas vezes ministro não pôde testemunhar que, no ano do seu centenário, uma pandemia seria responsável por mostrar ao mundo a importância do protagonismo do Estado para destravar o desenvolvimento. Foi Celso, por exemplo, o responsável pela criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), em 1959, com a intenção de pensar uma nova forma de desenvolvimento para a região. Ali, ele pensou formas de industrialização e desenvolvimento que buscavam conviver com a seca, em vez se tentar acabar com ela, como vinha sendo feito, infrutiferamente, até então. Com relação ao papel de Celso em seu governo, Juscelino teria dito simplesmente: “Só me arrependo de não tê-lo chamado mais cedo”.

Em um momento do documentário sobre Celso, a economista Maria da Conceição Tavares diz: “Ele sabia que a situação continuava muito ruim socialmente, que o subdesenvolvimento se reproduzia… Ele não estava abrindo mão daquela ideia, pelo contrário. Ele continuava com o diagnóstico estrutural pessimista sobre a reprodução interna do subdesenvolvimento”. Se ainda estivesse por aqui, talvez ele pudesse, mais uma vez, nos estender a mão, como o fez antes – seja como o iluminado pensador que foi, seja como homem de Estado, formulador de políticas públicas –, porque provavelmente constataria, como registrou no livro de memórias O longo amanhecer, “em nenhum momento de nossa história foi tão grande a distância entre o que somos e o que esperávamos ser”.

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Os decadentes avançam

Sim, é verdade: nós vivemos numa época de profunda decadência moral. E é verdade que isso desestrutura profundamente as formas antigas de vida, e desorienta os homens do presente: não sabemos bem o que fazemos, ou o que devemos fazer. Como os cegos de Goya, não conhecemos o caminho. Vivemos imersos na dúvida, sempre tendendo à desordem, a um passo do caos, e sentimos nosso chão vacilar. Pois quando os valores, antes firmes como alicerces, vacilam e decaem, sentimos tremer nosso edifício — e como os japoneses, que, dia sim, dia não, veem seus móveis sacolejando pelos cômodos graças às intempéries tectônicas, também nós podemos ver valores dançarem estranhamente à nossa frente, em plena luz do dia. É nossa civilização, com sua já não tão sólida moral e suas já não tão firmes certezas, o que vacila, submetida a pequenos, renitentes, cotidianos cataclismos.

Assim, é verdade: de nossa perspectiva inevitavelmente presente e, por isso, inevitavelmente decaída, o futuro se mostra nebuloso. Não conseguimos ver tão distintamente o que se mostra aos nossos olhos como os nossos avós conseguiam — era Gil quem dizia, quando eu próprio era pequeno, que antes o mundo era pequeno, porque a Terra era grande, e hoje ele é grande, porque a Terra é pequena. O mundo mudou, e com ele nossa imagem do futuro; e o que se desenha para lá da névoa que hoje nos embota os olhos pode bem ser monstros. Sim, é verdade. E nesse ponto talvez todos os conservadores estejam certos.

Mas a questão é que simplesmente não sabemos — não é verdade, meus caros conservadores? De modo que, mais para lá da cerração, pode muito bem haver anjos. E ainda que nossa visibilidade seja baixíssima — e que o futuro se mostre muito mais incerto do que se mostrava para os nossos avós —, é verdade também que alguns de nós caminham com passos firmes através da névoa, e com uma velocidade (suicida, alguns dirão) nunca antes vista. Por isso não me surpreendo quando, vez ou outra, ouço algum incauto, uns bons passos à minha frente (à nossa frente, leitor), dizer, de lá da vanguarda, que apalpa anjos; era só medo o que nos fazia interpretar como monstruosos os vultos alados que nos esperavam além da bruma. (Não que eu creia neles cegamente, ouvindo deles sem os ver; e, de toda forma, parece-me natural supor que há algo de monstruoso em eunucos alados.) Seja como for, insisto, mais na retaguarda: nossos valores decaem, o mundo se expande, nossas formas de orientação já não são mais seguras. E assim a dúvida, a desordem e o caos são a única realidade de nosso século.

Mas, quando voltamos nossas cabeças para a turba e sua gritaria, percebemos que também eles estão envoltos na mesma névoa que nos turva as vistas

Às minhas costas, no entanto, ouço uma turba de cautelosos agitados gritar: que não avancemos! Que o caminho já trilhado é o único seguro, que era por conhecê-lo que nossos avós sabiam o caminho: que retrocedamos! Mas, quando voltamos nossas cabeças para a turba e sua gritaria, percebemos que também eles estão envoltos na mesma névoa que nos turva as vistas. E, talvez ensurdecidos por sua gritaria, eles não ouvem os tremores da terra, que abrem crateras às suas costas, que destroem e inviabilizam os caminhos antigos. Os poucos entre eles que, em compensação, sentem tremer a terra sob seus pés se enganam tão grotescamente ao buscar por suas causas que por vezes não conseguimos conter o riso diante de suas hipóteses. Sabemos que são forças históricas de enorme magnitude o que nos tira o chão e os valores antes firmes (a história, por vezes, tem uma densidade geológica); mas para os conservadores a causa somos sempre nós, meus amigos progressistas: nos chamam globalistas, marxistas, esquerdistas, e supõem que, se fôssemos convertidos ou eliminados, teriam de volta seu antigo chão, seu antigo mundo.

Veja então que (e talvez isso sirva de consolo a nós que nos assumimos perdidos) há aqueles que nem sequer notam que se encontram à deriva. O problema é que, se antes bastava rir dos pobres coitados que negam as evidências de que estão perdidos, e não notam que a causa disso vai muito além de mim, hoje são eles, os cegos, os que nos conduzem. E a gravidade dessa situação não é tanto sua cegueira, mas, em primeiro lugar, o fato de que julgam ver claramente e saber para onde vão; e, em segundo, o de que se guiam por seu faro mais animal que racional ao nos levar para os escombros do caminho que se fechou às nossas costas, não para qualquer lugar real, mas para visões fantasistas de um passado para sempre perdido. Nós os ouvimos, e sentimos vibrar em nossos ossos e nossas mentes a convicção de que não há retorno possível — que somos nativos da desordem e do caos, que a segurança uma vez vivida é só uma lembrança remota e provavelmente falsa, que o passado não é mais caminho algum.

Sim, é verdade, nós nascemos nos estertores do segundo milênio, e ao nascer fomos lançados à decadência: mas justamente por isso este é o nosso lar. E nosso dilema existencial é este: ou tentamos nos sentir em casa em meio ao caos, à luta e à desordem, ou seremos para sempre estrangeiros em nosso país, deslocados do presente, amantes de um passado enterrado e incrédulos em qualquer promessa de futuro. Ou choramos pelos valores derramados, fazendo de nossas vidas um perpétuo pesar pela palpável decadência, ou nos assumimos decadentes, e extraímos da dissolução dos valores, da incerteza e da dúvida, a coragem para seguir adiante sem saber o que nos espera. Sim, é verdade, já não temos aqueles valores robustos e vistosos de nossos avós. Mas, se tivermos de tirar deles uma lição, que seja o desprezo pelo medo e pela covardia que porventura nos brota no peito quando enfrentamos o desconhecido. Que a nós, decadentes, reste a virtude da coragem para atravessar a decadência.

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Cartas na Mesa #5

Milton Ribeiro é o novo ministro da Educação. Mas, se o novo ministro seguir as linhas gerais da gestão Weintraub, tão cara a Bolsonaro, não há motivos para comemorarmos. O governo atual tem expressado, desde o início, se não desprezo, ao menos descaso pela já precarizada educação pública brasileira. Mas como tudo que é ruim sempre pode piorar, eis que veio a pandemia. Por isso, nos últimos dois blocos do episódio, a intrépida trupe de Cartas na Mesa invade a Sala dos Professores para conversar com Carolina Foganholo, José Tarciso e Pedro Gomes sobre como tem sido o cotidiano da educação pública durante a pandemia.

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Cartas na Mesa #001 – A prisão do Queiroz e seus desdobramentos

Cartas na Mesa #002 – O racismo explícito na política e a covid-19 nos presídios

Cartas na Mesa #003 – Polícia violenta e bandeiras da esquerda

Cartas na Mesa #004 – Trabalho e trabalhismo no Brasil

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Cartas na Mesa #4

Com as medidas de isolamento social e a consequente redução da atividade econômica, o que já vinha mal se agravou de forma catastrófica, e quem tem sentido isso na pele são os trabalhadores.

No primeiro bloco do programa, a intrépida trupe de Cartas na Mesa discute os dados da mais recente PNAD divulgada pelo IBGE, que mostram que, pela primeira vez na série histórica, o número de desocupados no país ultrapassou o daqueles que mantêm alguma atividade rentável. Depois da vinheta, nossa discussão sobre política mantém o tema sem sair do tom enquanto tentamos responder à pergunta: “o que aconteceu com o trabalhismo?”.

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Cartas na Mesa #3

Com a crescente exposição de casos de violência frequentemente gratuita das polícias militares pelo país, é possível acreditar que nossas políticas de segurança pública estão no rumo certo? No primeiro bloco de Cartas na Mesa desta semana, nossos colaboradores debatem a complicada e abusiva relação dessas corporações com a sociedade brasileira. Em seguida, o foco da discussão são as bandeiras que teriam a capacidade de unir os progressistas do Brasil para além do “fora, Bolsonaro!”. Seria a pauta antirracista uma delas?

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