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Tiroteio audiovisual

Publicado originalmente na edição #1 da revista FIGAS, em agosto de 2009.

Alameda Glória, São Paulo, agosto de 2007. Noite fria de garoa. Um sujeito de óculos desce a rua, tenso. Olha furtivamente para os lados, entre uma tragada e outra de cigarro. Dois homens se aproximam. Cada um vindo de uma direção. Antes que ele possa fazer qualquer movimento, um deles, o mais alto, saca a arma e dispara à queima roupa. Literalmente “fecham” o sujeito, que cai e permanece estirado na calçada. O menor dos comparsas se agacha junto ao corpo para confirmar se ele está realmente morto. O outro, autor do disparo, fita a vítima de pé enquanto blasfema algo. Em seguida ambos partem como se nada tivesse acontecido. Há uma delegacia nas proximidades, mas os policiais nem tomam conhecimento do fato.

Mais uma cena de violência urbana. Porém, esta se passa diante da Bolex 16mm de Nilson Primitivo e faz parte de Suíte oriental (2008), seu quinto curta-metragem filmado em São Paulo. A “vítima” do disparo é Rodrigo Andriotto, os dois homens que o abordaram são Paulo Abraão e Nick Farewell, e a arma utilizada é apenas uma réplica. A encenação é repetida pela quarta vez, iluminada pelos faróis do carro de Nick e uma lanterna de mão, enquanto Nilson gira a manivela de seu equipamento e fotografa o “assassinato” de diferentes ângulos.

Ainda em VHS, Primitivo fez diversos trabalhos, com os quais concorreu e participou de algumas mostras entre 1994 e 1995

Nilson Primitivo, o Nilsão, nasceu em Santos, mas isso não diz muita coisa a seu respeito. Ele é mesmo carioca, torcedor do botafogo, do bairro da Tijuca, zona norte do Rio. O sotaque não nega. Entrou para a faculdade de jornalismo, já com 30 anos, quando as coisas começaram a melhorar. Passou por um período difícil após a morte de seu pai e por dez anos teve de encarar a contragosto profissões como garçom e taxista para levantar alguma grana.

Foi nessa época, enquanto ainda trabalhava como motorista de táxi, que realizou seus primeiros trabalhos na linha experimental de colagem audiovisual que o caracteriza. “Entrei para a faculdade de comunicação e comecei a trabalhar com vídeo por acaso. Fiz algumas colagens em VHS que deram mais ou menos certo, peguei tesão pela coisa e não parei mais.” Isso foi no começo da década de 1990, época do governo Collor, período de penúria do cinema nacional. A produção cinematográfica no país quase se extinguiu após o fechamento da Embrafilme. “Só quem conseguiu fazer um filme na época foi o filho do banqueiro [Walter Salles filmou A grande arte em 1991]. Na época saiu uma matéria na capa do Jornal do Brasil em que ele alegava que o filme tinha sido financiado com capital estrangeiro.” Ainda em VHS, Primitivo fez diversos trabalhos, com os quais concorreu e participou de algumas mostras entre 1994 e 1995.

Passada a fase de abandono institucional do cinema brasileiro, veio uma nova geração que queria fazer cinema, mas de uma maneira que Primitivo considera muito careta. Ele chegou a participar como ator em um curta-metragem feito pelo pessoal da UFF (Universidade Federal Fluminense), rodado em 16mm. A única cena que ele gostou do filme foi considerada um erro pelo restante da equipe. Alguém esqueceu a luz da cozinha acesa enquanto era rodado o take e a cena ficou com uma coloração diferente. “A luz da cozinha deixou a fotografia esverdeada, ficou linda. Foi a única cena que eu gostei do filme e eles cortaram.” Resolveu então seguir a linha de experimentação que já fazia, mas agora em película, 16mm. “Tem uma textura de giz de cera que eu gosto e é uma coisa de memória também, da imagem de televisão que eu assistia quando criança.”

Foi nesse suporte que realizou seu primeiro curta-metragem, intitulado Mais velho (1999). Nesse filme ele caricaturou um ladrão que roubava pontos de venda do jogo do bicho no Rio nos anos 1980, biografado através de notícias de jornal. Neste trabalho já estão presentes as características peculiares de seus filmes: uso de negativos vencidos para filmar, áudio desencontrado das imagens, ruídos. Rodrigo Amarante, ex-integrante do Los Hermanos atualmente no Little Joy, participa deste curta fazendo as vozes dos personagens, já que a captação do som foi feita de forma indireta. Em uma cena, faz a voz de quatro deles. Amarante é amigo de Nilson da época em que ambos faziam teatro com o poeta Ericson Pires no Rio de Janeiro. Ele atua na maior parte de seus filmes.

Fotografia de Tay Nascimento, março de 2009

 

Mais velho não foi exibido em mostras, poucos o viram na época. “Não teve repercussão, mas o pessoal que participou achou legal e botou pilha de fazer mais.” Foi o que fez. Primitivo teve oito curtas de sua autoria exibidos em uma retrospectiva na MFL (Mostra do Filme Livre) do Rio de Janeiro em 2006, dentro do panorama “Cinema em Transe – Sessão Imprópria”, dedicado a experimentos radicais de linguagem, ao lado de produções de Jean Genet e John Lennon/Yoko Ono. A partir de então, seu trabalho começou a ganhar visibilidade e ele passou ser chamado para exibir seus filmes em outras mostras, como a que ocorreu em 2007 na Cinemateca Brasileira, com onze filmes, três deles feitos em SP.

 

Desconstrução do filme

Ó o operário, o operário, o aristocrata, o aristocrata, onde que tá o aristocrata e o burguês e o operário?”*

Impressão de deterioração do filme. Imagem e som em linhas diferentes, desconexas. Frases atravessam as imagens, praticamente se chocam com elas, diálogos? Recortes feitos por uma câmera insana, você não consegue prestar atenção no rosto dos… personagens? Fragmentos de músicas, rabiscos na tela, ruídos sonoros, música experimental, polifonia, tiroteio audiovisual e você…não consegue acompanhar? Mas… você queria entender o enredo? Achou que ia assistir a uma sessão de cinema? Perdeu mermão.

Primitivo utiliza negativos usados para fazer as filmagens. Os papéis são representados em sua maioria por amigos e a montagem dos filmes é feita na própria câmera

“Triunfou perdeu, a vida não é metafísica, é dialética, todo mundo, todo mundo, compreende, compreende meu camarada? Todo mundo que é classe média qué bejá o cú da princesa, tá compreendendo a situação, todo mundo que é classe média quer ser aristocratra.”

Primitivo utiliza negativos usados para fazer as filmagens. Os papéis são representados em sua maioria por amigos e a montagem dos filmes é feita na própria câmera. É ele mesmo quem faz a revelação dos negativos, utilizando banheiras ou potes tupperware. Os efeitos gerados nas imagens são em grande parte resultado de acidentes ocorridos durante esse processo.

A banda sonora é composta de recortes de diversos trechos de músicas, faixas de improvisação experimental de projetos dos selos independentes Fronha Records e LSDiscos, além das falas dos personagens que são captadas de forma indireta. Tudo propositadamente misturado e desencontrado com as imagens. Esse desencontro vem de uma mania de infância: “Pô, eu faço essa porra desde criança, essa demência de botar a imagem da televisão com o rádio falando e alguma outra música tocando ao mesmo tempo. No fundo já estava fazendo colagem”.

Quanto aos diálogos, Primitivo utiliza trechos da obra de autores como Lewis Carroll e Michel Foucault, lidos pelos atores de forma extremamente coloquial, além de frases soltas que ouve de transeuntes ou de internos do IPUB (Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro), onde trabalhou. “Eu não invento nada, só recorto e colo, tenho o maior orgulho de falar. É claro que isso acaba criando um discurso, nem que seja apenas na minha cabeça.”

Diferentemente da geração de 1968, Nilson não vê nenhum problema no rótulo de marginal. “Marginal também é gente, é marginal mesmo, porque não?” Porém faz questão de deixar bem claro que não tem nada com a discussão em torno de Cinema Novo x Cinema Marginal. “Isso é briga intestina deles que são da elite. Não tenho absolutamente nada a ver com Glauber Rocha e Rogério Sganzerla. Eu gosto de Sady Baby, Mario Vaz Filho e Zé Adauto Cardoso, os três maiores cineastas e seres humanos que o país já teve.”

 

Aterrissagem em São Paulo

Ambiente escuro, imagens cruas projetadas nas paredes. Ora em branco e preto, ora com uma camada de cor sobreposta. Batidas eletrônicas aumentam o clima apocalíptico do lugar ao se fundirem e confundirem com as imagens em uma profusão desordenada de signos imagéticos e sonoros. Cenas filmadas na rua, uma garota se maquia com batom, um cara picha o muro com spray. Os dois conversam qualquer coisa enquanto a câmera passeia e faz recortes nada convencionais sobre eles, apenas imagens. Tão incomum quanto os filmes é o figura que opera o projetor e faz a seleção da trilha sonora. Alto, com cerca de 40 anos e os braços repletos de tatuagens, algumas de sua autoria. É o Nilsão, que projeta nas paredes do Sarajevo, na rua Augusta, algumas das cenas de seu primeiro curta-metragem feito em São Paulo, Gru (2006). No recinto as pessoas circulam, bebem, fumam e conversam enquanto acompanham a sucessão de imagens. Em seguida são exibidos também por Nilson, alguns filmes de William Burroughs, expoente da geração beatnik que utiliza em suas experimentações audiovisuais, feitas entre 1963 e 1972, a técnica de cut-up, forma de colagem desenvolvida em textos pelo dadaísta Tristan Tzara. Pérolas do cinema underground norte-americano. A música eletrônica aumenta a distorção do raciocínio já fragmentado pelas imagens.

Nessa época, final de 2006, Nilson havia chegado recentemente a São Paulo, para morar. Fixara residência entre as ruas Aurora, Vitória e Guaianazes, o “triângulo das bermudas”, como ele define, onde “a boca, a zona e a delegacia convivem harmônica e inteligentemente, com elegância”. É nessa região que ele filma boa parte de Gru, como as cenas em que registra os ciganos da região. “As pessoas que vivem ali não leem livros, eles são livros, são todos personagens, os ciganos, aquele pessoal todo.”

Em 31 de maio de 2007 seus filmes são exibidos em uma sessão única na Cinemateca Brasileira. Ainda naquele ano, volta ao Rio a fim de dar andamento a outros projetos, como a filmagem da turnê de despedida do grupo Los Hermanos

Entre o final de 2006 e início de 2007, fez quatro filmes na cidade. Além de Gru – inspirado no personagem homônimo do livro A frente fria que a chuva traz, de Mário Bortolloto –, foram filmados Carta aos cegos – para aqueles que sabem ouvir e falar, construído a partir de uma poesia de Paulo de Tharso, o “Picanha”, Alerta aos carcereiros, com participação de Marcelo Colaiácovo, que trabalhava com José Mojica Marins, o Zé do Caixão, e Os sete cabeludos, filmado na Praça Roosevelt. Em 31 de maio de 2007, seus filmes foram exibidos em uma sessão única na Cinemateca Brasileira. Ainda naquele ano, retornou ao Rio a fim de dar andamento a outros projetos, como a filmagem da turnê de despedida do grupo Los Hermanos. Primitivo é o autor dos clipes de “Sentimental” (2002) e “O vento” (2004), ambos recusados pela MTV, mas disponíveis no Youtube, além do documentário Ventura, feito em 2004 em parceria com Sergio Lutz Barbosa. Foi para Curitiba trabalhar como técnico em uma filmagem sobre Paulo Leminski e aproveitou para fazer uma visita a Petter Baiestorf, autor catarinense de filmes gore.

Novamente em São Paulo, ainda em 2007, filmou Suíte oriental. Colaborou na montagem da retrospectiva dos cinquenta anos de carreira de Zé do Caixão organizada pelo CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil) em parceria com a Cinemateca Brasileira e com curadoria de Eugênio Puppo. Conhece Dennison Ramalho (Amor só de mãe, 2003) e Paulo Sacramento (O prisioneiro da grade de ferro, 2004), responsáveis respectivamente pelo roteiro e pela produção de Encarnação do demônio, filme de Mojica finalizado em 2007 e que fechou a trilogia iniciada com À meia-noite levarei sua alma (1964). Ramalho adaptou o roteiro original de 1966 e o transpôs do espaço rural para o urbano, e Sacramento, da produtora Olhos de Cão, produziu a película em parceria com a Gullane Filmes, dos irmãos Caio e Fabiano. O restante da verba veio através do Concurso de Baixo Orçamento do Ministério da Cultura. Primitivo foi informado de que o orçamento da produção já estava fechado e não teria como participar do filme, mas conseguiu autorização para realizar imagens dos bastidores, em 16mm, e com as quais fez o curta Hell No Honey, projetado no início de 2008 nas paredes da galeria Cinesol, na livraria Arquipélago, bairro da Liberdade, em uma de suas inúmeras passagens relâmpago por São Paulo. De quebra, ainda foi convidado a fazer um papel de zumbi no filme, devido à impossibilidade de o ator escalado comparecer às filmagens no dia. Em uma de suas incursões no set de Encarnação do demônio, colocou o filme do lado errado na câmera e, ao contar para Mojica do acidente, ouviu o seguinte: “Já fiz muito isso, a imagem fica ótima”.

Fotografia de Tay Nascimento, março de 2009

 

De volta ao Rio fez o curta Constantinopla (2008), uma visão do tráfico isenta de qualquer moralismo e longe dos estereótipos encontrados nas produções nacionais que abordam o tema. Logo no início da película, uma moradora do morro anuncia: “o diabo não é tão feio quanto eles pintam”. Também no Rio trabalhou na montagem de uma mostra sobre o diretor Ozualdo Candeias – pioneiro do cinema marginal paulistano com seu filme A margem, de 1966. A mostra foi organizada através de uma parceria da Caixa Cultural do Rio de Janeiro com a Cinemateca Brasileira. Primitivo voltou a residir em São Paulo ainda em 2008. Filmou os bastidores da gravação do álbum Sou de Marcelo Camelo com a banda Hurtmold e captou imagens do Autoengano, projeto do selo LSDiscos. Foi a Salvador, onde fez a filmagem do DVD oficial de Camelo em uma apresentação do músico na Concha Acústica do Teatro Castro Alves, com a participação de Mallu Magalhães e Dominguinhos, acompanhados pela banda Hurtmold. A apresentação aconteceu dentro do projeto “Sua nota é um show”, promovido pelas secretarias de Cultura e Fazenda do Estado da Bahia. Atualmente, Primitivo trabalha nos clipes de “El hueco”, de Juliana R, e “Seringa”, dos Trovadores de Bordel.

Suíte oriental e Maldito ciclo lunar, são os trabalhos autorais mais recentes de Primitivo. Ambos foram finalizados em 2008 e estão disponíveis no Youtube. Maldito ciclo lunar é mais um experimento marginal de Primitivo com a presença de Rodrigo Amarante. Já Suíte oriental é uma homenagem à Sady Baby, o que pode ser detectado nos diálogos da película. A preocupação do autor, quando da filmagem da cena do assassinato de Suíte oriental, era se, após a revelação do negativo, as imagens ficariam minimamente visíveis. Ficaram, com todos os ruídos e nuances que um negativo vencido proporciona como resultado desse processo, realmente experimental, que é a confecção de seus filmes. Experimental porque ele joga com todas as variantes do processo fílmico como quem joga búzios, e acolhe abertamente os resultados para compor a película. No caso específico de Suíte oriental, a imprevisibilidade do resultado se manteve até o final da edição, quando surgiram várias versões, até que uma delas foi dada como definitiva. Na cena específica do assassinato, é possível distinguir aquilo que foi visto a olho nu durante a filmagem, mas de forma fragmentária e entremeada por clarões. A imagem se desfaz, a tela fica branca, surgem algumas abstrações em tom marrom, frutos de alguma provável deterioração do negativo, e então ressurge a imagem, sempre com a presença dos rabiscos e chuviscos que perambulam o tempo todo pela tela. Tudo isso somado aos gritos de “Puta que pariu” que emanam da faixa “DNA ou NADA”, do grupo Satã Bárbara.

* As falas foram tiradas do curta-metragem Mais velho (1999), de Nilson Primitivo. A forma coloquial e os propositais erros de português utilizados no filme foram mantidos.

bitches1

Whatsapp para bitches

Substituir o amor pela carta de amor (?).

Desterritorializar o amor. Substituir o contrato

conjugal tão temido por um pacto diabólico.

G. Deleuze

A menstruação sonhava podre dentro delas

Herberto Helder

uma coisa p se agarrar em 27 do um de 2016

1 xereca iluminada

as esferas distintas — sobre perseguir algo obstinadamente –

bem aquilo de q falávamos

sem titubear

de casar ca literatura

– a hilda hilst faz contato com o absurdo

o q é felicidade p vc?

kaaaabum:

(olha eu queria saber em q parte do corpo se vive

p acender os leds na noite imensa)

mta pakera indescritível

amor no curral

drogas lisérgicas d alta qualidade

ensinar nossa neném a usar carabina fazer bomba

matar madeireiro — caminho aberto p os rato.

a indicação é ñ engravidar:

alopatia plástica e pelanca dps d ser embuchada.

– oi eu fiz neném

– tava na cara q era vc.

eu ñ recomendo casar c homi nenhum

eu tropeço em casamentos

eu tô só nesse avanço vertiginoso de pintos furta-cor

eu gosto d muléris

homem como categoria é algo detestável.

ñ posso alegar ignorância

casamento burguês é 1 formato falido

porém

viciante. amor livre é bom libertador

mas rola 1 coisa estranha:

mistura de ciúmes com hpv.

(a boca treme ao choque dos elos

a carne ascende ao mover do sangue

o sangue atiça o pomar do mundo:

há corpos contra corpos)

*

aki no Setor de Desemprego Contemplativo (SDC):

eu fui dormir às 4

eu vou escrever hj

eu curti a filosofia ativista e o virtual atual

eu tô de mau humor e devia fazer 1 rango.

qndo a gente passar num concurso público e cimentar nosso rabo

levaremo o copaum d cana p gabinete

e teremo várias muléris [someday somehow]

por agora

vender pênis de lentilha no lembylesby.com.

*

a donna haraway me ensinou a rezar:

sou eu no futuro enfática

meu deus

pfv quero sempre ser mulher

amém.

*

são paulo chove e tem sopa d beterraba

acabei d estender a ropa no varal

nasceu 1 espinha no meu queixo

ele quer saber a q hs fui dormir e pq.

(delicadas geografias percorrem nosso medo

cai no sono a ponta das têmporas

mãos imóveis peitos bruscos

ninguém sabe para onde soprar esse som devagar

espantoso)

*

o dia d hj é o anúncio do apocalipse

há placas d intranquilidade espalhadas por todos os lados

a vida tá passando hj msm já passou 3 meses

*

utilizar assuntos vigentes

p instaurar o lixorama:

meu breve lance c oswald de andrade

vem d qndo ele dizia q o brasil é uma república federativa

cheia de árvores e gente dando adeus. depois todos morrem.

*

oi

oi

oie

bom dia

boa noite

aki tá tudo escuro

por aki tb ainda ñ amanheceu…

*

xororô, angústia lacrimogênia

vamo lá tomá 1 negocinho?

tpm devastando td por aki

hj comi 5 kg de arroz

o psicológico

tb passa pela boca antes d chegar no estômago e virar excremento.

eu p. ex.:

escrevi uma redação qndo tinha 13 anos

levava umas palavras altas

impelidas pelo renque d luz

obra geral em q me punha diante da realeza

e dizia o qnto a torpeza diminui o mundo.

terminava assim:

“cadeia neles, cadeia!”

(agora:

volto aos tumultos dos dias tremendos

e me pergunto pelas putas que irão salvar o mundo)

*

volta pro quarto

toca 1 siririca

se vc prometer fazer isso

eu faço tb

eu tb

eu TAMBÉM

todas juntas:

vemmmmmmmmmmmmmmm

acendam suas pepekas

t esperamos toda nua

aew

cjefueiii

quenga

safada

q lyndo hackear a vagina dazamiga

vocação pazuzu

fucking happy

lésbica futurista com disposição p viver 1 xanhaça

*

ei vc tem 1 gato antropomiau 1 bicho bichano

alguém q respire e lance 1 luz inteligente sobre o mundo?

enquanto isso susan miller apenas sugere

que vc find a way to weave a memory that you and those

you hold close will always remember:

1 poema p. ex.

(a linha invisível sobre o papel em branco

surpreende o alfabeto de sangue

o sangue escorre pelas nossas pernas

e puras

manchamos os nomes em ritual de batismo)

*

mistérios gozosos

*

tudo se ajeita 1 dia seremos puro amor

mas agora ñ consigo

tô no meio dum raciocínio.

*

hello angels

aki umas lágrima de alegria & saudady a pretexto de uma flor.

minha alma foi estigmatizada após retornar d dias felizes

bora plis encontrar 1 jeito d resolver essa miséria

enfiar goela abaixo esse ovo q entupiu minha garganta.

*

OI

ganhei 1kg de mequenhe.

*

ele c pênis na mão e auréola de anjo

ele perdeu a cueca tal e coisa

ele ñ é mais o mesmo

ele casou e tal

ele tá comendo uma puta salvo engano

verme insolente

protozoário invertebrado

múmia purgante.

(por onde anda, por onde os pés sobre os perímetros, Peri?

princeso aceso em leds dégradée

músculo convulso pálpebra comprida

coseu em mim os dedos cravados

em mim as animalidades abertas à exaltação)

*

– vc é 1 cavalo alado

– eu deixei as asas no curral

– vc é 1 unicórnio c 1 pinto de borracha na cabeça

– eu perdi a cabeça

*

todos os buracos

fracos

lassos

contagem regressiva p amanhecer malsã

regresso ao só ao pó ao nó:

rosa choque nosso mais além

 

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Ana Cristina Joaquim é mestre em Filosofia (Unicamp, 2012) e Doutora em Letras (USP, 2016). Atualmente desenvolve pesquisa de pós-doutorado em Teoria Literária (Unicamp, Fapesp). Com o objetivo de divulgar a poesia contemporânea escrita por mulheres, organizou três volumes da antologia Anamorfoses (vol. I: Annablume, 2014; vol. II: Lumme Editor, 2016; vol. III: Editóra Cóorego, 2018). Tem artigos sobre poesia portuguesa e brasileira publicados em periódicos especializados e escreve poemas com alguma regularidade.

Audálio Dantas com Carolina de Jesus na Favela do Canindé, em 1960. Fotografia do arquivo de Ruth de Souza.

Retrato da favela no diário de Carolina

Carolina Maria de Jesus vive num mundo de tábua e zinco que ela retrata com fidelidade. Seu diário constitui interessante documentário da vida na favela.

A favela do Canindé, em São Paulo, é o pequeno (e miserável) mundo de Carolina Maria de Jesus. Uma favela igual a todas as outras: suja, triste, turbulenta. E com a desvantagem de ter nascido na beira de um rio (o Tietê), que frequentemente invade tudo com as suas águas carregadas das sujeiras da cidade. Carolina vive mal, como vivem todos na favela. Profissão, não tem. Apanha papéis nas latas de lixo da cidade. Nem sempre há o que comer (para ela e três filhos menores) em seu barraco. Mas ela aprendeu a “ver” além da lama da “rua” e dos barracos escuros: tem o seu mundinho interior, no qual, às vezes, há sol e nuvens coloridas. Escreve versos ingênuos, enche cadernos de sonhos. Mas não se limita a sonhar. Não esquece o mundo sórdido que a cerca, a miséria de seus irmãos favelados — a sua própria miséria. Maria Carolina tem em seu barraco uma dezena de cadernos cheios da vida da favela, um diário fiel, sem artifícios, do dia a dia de sua comunidade marginal. Há longos anos, ela vem escrevendo a respeito do seu pequeno mundo, “fotografando” misérias, desencantos e, até, pequenas alegrias. Porque, segundo ela mesma comenta, “a gente que mora na favela também tem dia de alegria”.

Lata d’água na cabeça, como as Marias de todas as favelas.

A fome fabrica uma escritora

Mesa de caixote, caderno e lápis: Carolina retrata a favela.

O “diário” de Carolina é reportagem autêntica, retrato sem retoques. Carolina Maria de Jesus faz reportagem diária sobre a favela. Reportagem vivida e sofrida. Quando fala da longa espera na “fila da água” (há apenas uma torneira para o abastecimento de toda a população) é com o conhecimento de causa de quem permanece horas sentada numa lata, aguardando a vez de chegar à torneira. E quando escreve, com sua caligrafia nervosa, que não tem o que comer, é com o desalento de quem está de estômago vazio, e sem perspectiva imediata de enchê-lo.

Carolina Maria de Jesus tem 45 anos de idade: “23 anos de miséria na roça e 22 anos de miséria na cidade”, conforme ela mesma define a sua vida. Nasceu no interior de Minas (Sacramento) e está em São Paulo desde 1937, ano em que “estreou” na favela. Sozinha, sem experiência, encontrava todas as portas fechadas. Até que conheceu outros miseráveis, que lhe estenderam a mão. Foi na favela, onde vive até hoje, que encontrou um pouco de solidariedade. E, como marginal, começou a preocupar-se com o problema de outros marginais. Entre os papéis, que apanhava no lixo, sempre encontrava revistas velhas, livros dilacerados. Lia tudo. Um dia, tentou uns versos, achou bom e começou a sua “fase poética”.

Tudo era motivo para quadrinhas ingênuas que falavam de gente pobre, de gente rica, de gente boa e de gente ruim. Depois vieram os “contos” e os “romances” — histórias simples, mas sempre marcadas pelos tons negros da miséria.

Carolina vive dos papéis que apanha, e na miséria da favela acha motivo de inspiração

Diante da Academia Paulista de Letras: não é candidata.

Alguém viu os seus escritos e disse que eram bons, que ela procurasse os jornais. Carolina iniciou uma peregrinação pelas redações, mas nem sempre encontrava alguém com disposição para ler os seus cadernos. Dos jornais passou às editoras. Nunca chegou a ser recebida. Desistiu, mas não parou de escrever. Por necessidade de dizer algo ao mundo, gritar aos ouvidos surdos do mundo. Seu barraco está cheio de cadernos velhos, empoeirados. Cheio dos gritos roucos dos favelados.

Mas Carolina não é apenas uma mulher que grita contra o mundo. Tem os seus momentos de fuga, quando deixa o registro puro e simples das misérias da favela e se encontra com o seu “mundinho interior”. Olha através da janela do barraco e não vê a lama do terreiro. Nem ouve o choro do filho do vizinho. Descobre nuvens coloridas sobre os telhados de zinco, enche os olhos de sol e o coração de alegria.

Apanhar papel é ganha-pão. Vera Eunice, a filha, a acompanha.

É no “diário”, porém, que se encontra a autêntica Carolina Maria de Jesus, favelada falando da favela. Carolina só esteve durante dois anos na escola, mas sabe contar histórias. Suas frases curtas, muitas vezes incorretas, dizem muita coisa. Coisas de um pequeno mundo que se agita sob telhados de zinco. Eis alguns trechos do “Diário de Carolina”, escolhidos ao acaso:

“21 de julho de 1955. Despertei com a voz de D. Maria perguntando-me se eu queria comprar banana e alface. Olhei as crianças. Estavam dormindo. Fiquei quieta. Quando eles vê as frutas sou obrigada a comprar. […] Já habituei a beber café na casa de Seu Lino. Tudo que eu peço a ele emprestado ele me empresta. Quando eu vou pagar, não recebe. Fui torcer roupa e vim preparar o almoço. Hoje estou cantando. Todos nós temos o nosso dia de alegria. Hoje é o meu!”

“17 de maio de 1958. Levantei nervosa. Com vontade de morrer. Já que os pobres estão mal colocados, para que viver? Será que os pobres de outro país sofrem igual aos pobres do Brasil? Eu estava descontente que até cheguei a brigar com o meu filho José Carlos sem motivo.”

“19 de maio de 1958. Deixei o leito às 5 horas. Os pardais já estão iniciando a sua sinfonia matinal. As aves deve ser mais feliz que nós. São irracionais. Talvez entre elas reina amizade e igualdade. […] O mundo das aves deve ser melhor do que o dos favelados, que deitam e não dormem porque deitam-se sem comer. […] Havia pessoas que nos visitava e dizia: ‘Credo, para viver num lugar assim só os porcos. Isto aqui é o chiqueiro de São Paulo’. […] Lavei o assoalho porque estou esperando a visita de um futuro deputado e ele quer que eu faça uns discursos para ele. Vou encontrá-lo hoje às 10 horas. Ele disse que pretende conhecer a favela, que se for eleito há de abolir as favelas. […] Eu ando tão preocupada que ainda não contemplei os jardins da cidade. É a época das flores brancas, a cor que predomina. É o mês de Maria e os altares deve estar adornados com as flores brancas.”

“20 de maio de 1958. O dia vinha surgindo quando eu deixei o leito. A Vera despertou e cantou. E convidou-me para cantar. Cantamos. O João e o José Carlos tomaram parte.”

“28 de maio de 1958. Amanheceu chovendo. Tenho só 3 cruzeiros porque emprestei 5 para a Leila ir buscar a filha no hospital. Estou desorientada, sem saber o que iniciar. Quero escrever, quero trabalhar, quero lavar roupa. Estou com frio. E não tenho sapato para calçar. Os sapatos dos meninos estão furados. […] Passei uma noite horrível. Sonhei que eu residia numa casa residível [sic.], tinha banheiro, cozinha, copa e até quarto de criada. Eu ia festejar o aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu ia comprar-lhe umas panelinhas que há muito ela vive pedindo. Porque eu estava em condições de comprar. Sentei na mesa para comer. A toalha era alva igual ao lírio. Eu comia bife, pão com manteiga, batata frita e salada. Quando fui pegar outro bife despertei. Que realidade amarga! Eu não residia na cidade. Estava na favela. Na lama, às margens do Tietê. E com 9 cruzeiros apenas. Não tenho açúcar porque ontem eu saí e os meninos comeram o pouco que eu tinha. […] Fiz a comida. Achei bonito a gordura frigindo na panela. Que espetáculo deslumbrante! As crianças sorrindo vendo a comida ferver na panela. Ainda mais quando é arroz e feijão, é um dia de festa para elas.”

“12 de agosto de 1958. Deixei o leito às 6 e meia e fui buscar água. Estava uma fila enorme. E o pior de tudo é a maledicência, que é o assunto principal. Tinha uma preta que parece que foi vacinada com agulha de vitrola. Falava do genro que brigava com sua filha. Atualmente é difícil para pegar água porque o povo da favela duplicou-se. E a torneira é só uma.”

“23 de outubro de 1958. […] Agora o que passou a ser o encarregado da luz deixou de trabalhar. De manhã ele senta lá na torneira e fica dando palpite. Eu penso: ele perde porque a língua das mulheres da favela é de amargar. Não é de osso, mas quebra osso. Até o Lacerda perde para as mulheres da favela.”

“5 de dezembro de 1958. […] Fiquei horrorizada quando ouvi as crianças comentando que o filho do senhor J. M. foi na escola embriagado. É que o menino está com 12 anos. Eu hoje estou muito triste.”

“25 de dezembro de 1958. […] O João entrou dizendo que estava com dor de barriga. Percebi que foi por ele ter comido melancia estragada. Hoje jogaram um caminhão de melancia perto do rio. Não sei por que é que esses comerciantes inconscientes vem jogar seus produtos deteriorados aqui na favela para as crianças ver e comer.”

“31 de dezembro de 1958. […] Hoje uma nortista foi para o hospital ter filho e a criança nasceu morta. Ela está tomando soro. A sua mãe está chorando porque ela é filha única. Tem baile na casa do Vitor. Adormeci depois das corridas [refere-se à corrida de São Silvestre]. E fiquei pensando na minha vida no decorrer deste ano. […] O José Carlos e o João José estavam Jogando bola. A bola do Tonico. E a bola caiu dentro do quintal do V. E a mulher do V. furou a bola do menino. E os meninos começaram a xingar. Ela pegou um revolver e correu atrás dos meninos. E se o revolver disparasse?”

Eis uma pequena amostra do “Diário de Carolina”. São coisas que ela escreve e deseja que o mundo veja.

Nota da redação: foi respeitado o original.

Canindé — o seu mundo cheio de misérias e desencantos. Em seu barraco há cadernos que esperam o registro do que viu e sentiu.