A favela do Canindé, em São Paulo, é o pequeno (e miserável) mundo de Carolina Maria de Jesus. Uma favela igual a todas as outras: suja, triste, turbulenta. E com a desvantagem de ter nascido na beira de um rio (o Tietê), que frequentemente invade tudo com as suas águas carregadas das sujeiras da cidade. Carolina vive mal, como vivem todos na favela. Profissão, não tem. Apanha papéis nas latas de lixo da cidade. Nem sempre há o que comer (para ela e três filhos menores) em seu barraco. Mas ela aprendeu a “ver” além da lama da “rua” e dos barracos escuros: tem o seu mundinho interior, no qual, às vezes, há sol e nuvens coloridas. Escreve versos ingênuos, enche cadernos de sonhos. Mas não se limita a sonhar. Não esquece o mundo sórdido que a cerca, a miséria de seus irmãos favelados — a sua própria miséria. Maria Carolina tem em seu barraco uma dezena de cadernos cheios da vida da favela, um diário fiel, sem artifícios, do dia a dia de sua comunidade marginal. Há longos anos, ela vem escrevendo a respeito do seu pequeno mundo, “fotografando” misérias, desencantos e, até, pequenas alegrias. Porque, segundo ela mesma comenta, “a gente que mora na favela também tem dia de alegria”.
A fome fabrica uma escritora
O “diário” de Carolina é reportagem autêntica, retrato sem retoques. Carolina Maria de Jesus faz reportagem diária sobre a favela. Reportagem vivida e sofrida. Quando fala da longa espera na “fila da água” (há apenas uma torneira para o abastecimento de toda a população) é com o conhecimento de causa de quem permanece horas sentada numa lata, aguardando a vez de chegar à torneira. E quando escreve, com sua caligrafia nervosa, que não tem o que comer, é com o desalento de quem está de estômago vazio, e sem perspectiva imediata de enchê-lo.
Carolina Maria de Jesus tem 45 anos de idade: “23 anos de miséria na roça e 22 anos de miséria na cidade”, conforme ela mesma define a sua vida. Nasceu no interior de Minas (Sacramento) e está em São Paulo desde 1937, ano em que “estreou” na favela. Sozinha, sem experiência, encontrava todas as portas fechadas. Até que conheceu outros miseráveis, que lhe estenderam a mão. Foi na favela, onde vive até hoje, que encontrou um pouco de solidariedade. E, como marginal, começou a preocupar-se com o problema de outros marginais. Entre os papéis, que apanhava no lixo, sempre encontrava revistas velhas, livros dilacerados. Lia tudo. Um dia, tentou uns versos, achou bom e começou a sua “fase poética”.
Tudo era motivo para quadrinhas ingênuas que falavam de gente pobre, de gente rica, de gente boa e de gente ruim. Depois vieram os “contos” e os “romances” — histórias simples, mas sempre marcadas pelos tons negros da miséria.
Carolina vive dos papéis que apanha, e na miséria da favela acha motivo de inspiração
Alguém viu os seus escritos e disse que eram bons, que ela procurasse os jornais. Carolina iniciou uma peregrinação pelas redações, mas nem sempre encontrava alguém com disposição para ler os seus cadernos. Dos jornais passou às editoras. Nunca chegou a ser recebida. Desistiu, mas não parou de escrever. Por necessidade de dizer algo ao mundo, gritar aos ouvidos surdos do mundo. Seu barraco está cheio de cadernos velhos, empoeirados. Cheio dos gritos roucos dos favelados.
Mas Carolina não é apenas uma mulher que grita contra o mundo. Tem os seus momentos de fuga, quando deixa o registro puro e simples das misérias da favela e se encontra com o seu “mundinho interior”. Olha através da janela do barraco e não vê a lama do terreiro. Nem ouve o choro do filho do vizinho. Descobre nuvens coloridas sobre os telhados de zinco, enche os olhos de sol e o coração de alegria.
É no “diário”, porém, que se encontra a autêntica Carolina Maria de Jesus, favelada falando da favela. Carolina só esteve durante dois anos na escola, mas sabe contar histórias. Suas frases curtas, muitas vezes incorretas, dizem muita coisa. Coisas de um pequeno mundo que se agita sob telhados de zinco. Eis alguns trechos do “Diário de Carolina”, escolhidos ao acaso:
“21 de julho de 1955. Despertei com a voz de D. Maria perguntando-me se eu queria comprar banana e alface. Olhei as crianças. Estavam dormindo. Fiquei quieta. Quando eles vê as frutas sou obrigada a comprar. […] Já habituei a beber café na casa de Seu Lino. Tudo que eu peço a ele emprestado ele me empresta. Quando eu vou pagar, não recebe. Fui torcer roupa e vim preparar o almoço. Hoje estou cantando. Todos nós temos o nosso dia de alegria. Hoje é o meu!”
“17 de maio de 1958. Levantei nervosa. Com vontade de morrer. Já que os pobres estão mal colocados, para que viver? Será que os pobres de outro país sofrem igual aos pobres do Brasil? Eu estava descontente que até cheguei a brigar com o meu filho José Carlos sem motivo.”
“19 de maio de 1958. Deixei o leito às 5 horas. Os pardais já estão iniciando a sua sinfonia matinal. As aves deve ser mais feliz que nós. São irracionais. Talvez entre elas reina amizade e igualdade. […] O mundo das aves deve ser melhor do que o dos favelados, que deitam e não dormem porque deitam-se sem comer. […] Havia pessoas que nos visitava e dizia: ‘Credo, para viver num lugar assim só os porcos. Isto aqui é o chiqueiro de São Paulo’. […] Lavei o assoalho porque estou esperando a visita de um futuro deputado e ele quer que eu faça uns discursos para ele. Vou encontrá-lo hoje às 10 horas. Ele disse que pretende conhecer a favela, que se for eleito há de abolir as favelas. […] Eu ando tão preocupada que ainda não contemplei os jardins da cidade. É a época das flores brancas, a cor que predomina. É o mês de Maria e os altares deve estar adornados com as flores brancas.”
“20 de maio de 1958. O dia vinha surgindo quando eu deixei o leito. A Vera despertou e cantou. E convidou-me para cantar. Cantamos. O João e o José Carlos tomaram parte.”
“28 de maio de 1958. Amanheceu chovendo. Tenho só 3 cruzeiros porque emprestei 5 para a Leila ir buscar a filha no hospital. Estou desorientada, sem saber o que iniciar. Quero escrever, quero trabalhar, quero lavar roupa. Estou com frio. E não tenho sapato para calçar. Os sapatos dos meninos estão furados. […] Passei uma noite horrível. Sonhei que eu residia numa casa residível [sic.], tinha banheiro, cozinha, copa e até quarto de criada. Eu ia festejar o aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu ia comprar-lhe umas panelinhas que há muito ela vive pedindo. Porque eu estava em condições de comprar. Sentei na mesa para comer. A toalha era alva igual ao lírio. Eu comia bife, pão com manteiga, batata frita e salada. Quando fui pegar outro bife despertei. Que realidade amarga! Eu não residia na cidade. Estava na favela. Na lama, às margens do Tietê. E com 9 cruzeiros apenas. Não tenho açúcar porque ontem eu saí e os meninos comeram o pouco que eu tinha. […] Fiz a comida. Achei bonito a gordura frigindo na panela. Que espetáculo deslumbrante! As crianças sorrindo vendo a comida ferver na panela. Ainda mais quando é arroz e feijão, é um dia de festa para elas.”
“12 de agosto de 1958. Deixei o leito às 6 e meia e fui buscar água. Estava uma fila enorme. E o pior de tudo é a maledicência, que é o assunto principal. Tinha uma preta que parece que foi vacinada com agulha de vitrola. Falava do genro que brigava com sua filha. Atualmente é difícil para pegar água porque o povo da favela duplicou-se. E a torneira é só uma.”
“23 de outubro de 1958. […] Agora o que passou a ser o encarregado da luz deixou de trabalhar. De manhã ele senta lá na torneira e fica dando palpite. Eu penso: ele perde porque a língua das mulheres da favela é de amargar. Não é de osso, mas quebra osso. Até o Lacerda perde para as mulheres da favela.”
“5 de dezembro de 1958. […] Fiquei horrorizada quando ouvi as crianças comentando que o filho do senhor J. M. foi na escola embriagado. É que o menino está com 12 anos. Eu hoje estou muito triste.”
“25 de dezembro de 1958. […] O João entrou dizendo que estava com dor de barriga. Percebi que foi por ele ter comido melancia estragada. Hoje jogaram um caminhão de melancia perto do rio. Não sei por que é que esses comerciantes inconscientes vem jogar seus produtos deteriorados aqui na favela para as crianças ver e comer.”
“31 de dezembro de 1958. […] Hoje uma nortista foi para o hospital ter filho e a criança nasceu morta. Ela está tomando soro. A sua mãe está chorando porque ela é filha única. Tem baile na casa do Vitor. Adormeci depois das corridas [refere-se à corrida de São Silvestre]. E fiquei pensando na minha vida no decorrer deste ano. […] O José Carlos e o João José estavam Jogando bola. A bola do Tonico. E a bola caiu dentro do quintal do V. E a mulher do V. furou a bola do menino. E os meninos começaram a xingar. Ela pegou um revolver e correu atrás dos meninos. E se o revolver disparasse?”
Eis uma pequena amostra do “Diário de Carolina”. São coisas que ela escreve e deseja que o mundo veja.
Nota da redação: foi respeitado o original.