Publicado originalmente na edição #1 da revista FIGAS, em agosto de 2009.
Alameda Glória, São Paulo, agosto de 2007. Noite fria de garoa. Um sujeito de óculos desce a rua, tenso. Olha furtivamente para os lados, entre uma tragada e outra de cigarro. Dois homens se aproximam. Cada um vindo de uma direção. Antes que ele possa fazer qualquer movimento, um deles, o mais alto, saca a arma e dispara à queima roupa. Literalmente “fecham” o sujeito, que cai e permanece estirado na calçada. O menor dos comparsas se agacha junto ao corpo para confirmar se ele está realmente morto. O outro, autor do disparo, fita a vítima de pé enquanto blasfema algo. Em seguida ambos partem como se nada tivesse acontecido. Há uma delegacia nas proximidades, mas os policiais nem tomam conhecimento do fato.Mais uma cena de violência urbana. Porém, esta se passa diante da Bolex 16mm de Nilson Primitivo e faz parte de Suíte oriental (2008), seu quinto curta-metragem filmado em São Paulo. A “vítima” do disparo é Rodrigo Andriotto, os dois homens que o abordaram são Paulo Abraão e Nick Farewell, e a arma utilizada é apenas uma réplica. A encenação é repetida pela quarta vez, iluminada pelos faróis do carro de Nick e uma lanterna de mão, enquanto Nilson gira a manivela de seu equipamento e fotografa o “assassinato” de diferentes ângulos.
Ainda em VHS, Primitivo fez diversos trabalhos, com os quais concorreu e participou de algumas mostras entre 1994 e 1995
Nilson Primitivo, o Nilsão, nasceu em Santos, mas isso não diz muita coisa a seu respeito. Ele é mesmo carioca, torcedor do botafogo, do bairro da Tijuca, zona norte do Rio. O sotaque não nega. Entrou para a faculdade de jornalismo, já com 30 anos, quando as coisas começaram a melhorar. Passou por um período difícil após a morte de seu pai e por dez anos teve de encarar a contragosto profissões como garçom e taxista para levantar alguma grana.
Foi nessa época, enquanto ainda trabalhava como motorista de táxi, que realizou seus primeiros trabalhos na linha experimental de colagem audiovisual que o caracteriza. “Entrei para a faculdade de comunicação e comecei a trabalhar com vídeo por acaso. Fiz algumas colagens em VHS que deram mais ou menos certo, peguei tesão pela coisa e não parei mais.” Isso foi no começo da década de 1990, época do governo Collor, período de penúria do cinema nacional. A produção cinematográfica no país quase se extinguiu após o fechamento da Embrafilme. “Só quem conseguiu fazer um filme na época foi o filho do banqueiro [Walter Salles filmou A grande arte em 1991]. Na época saiu uma matéria na capa do Jornal do Brasil em que ele alegava que o filme tinha sido financiado com capital estrangeiro.” Ainda em VHS, Primitivo fez diversos trabalhos, com os quais concorreu e participou de algumas mostras entre 1994 e 1995.
Passada a fase de abandono institucional do cinema brasileiro, veio uma nova geração que queria fazer cinema, mas de uma maneira que Primitivo considera muito careta. Ele chegou a participar como ator em um curta-metragem feito pelo pessoal da UFF (Universidade Federal Fluminense), rodado em 16mm. A única cena que ele gostou do filme foi considerada um erro pelo restante da equipe. Alguém esqueceu a luz da cozinha acesa enquanto era rodado o take e a cena ficou com uma coloração diferente. “A luz da cozinha deixou a fotografia esverdeada, ficou linda. Foi a única cena que eu gostei do filme e eles cortaram.” Resolveu então seguir a linha de experimentação que já fazia, mas agora em película, 16mm. “Tem uma textura de giz de cera que eu gosto e é uma coisa de memória também, da imagem de televisão que eu assistia quando criança.”Foi nesse suporte que realizou seu primeiro curta-metragem, intitulado Mais velho (1999). Nesse filme ele caricaturou um ladrão que roubava pontos de venda do jogo do bicho no Rio nos anos 1980, biografado através de notícias de jornal. Neste trabalho já estão presentes as características peculiares de seus filmes: uso de negativos vencidos para filmar, áudio desencontrado das imagens, ruídos. Rodrigo Amarante, ex-integrante do Los Hermanos atualmente no Little Joy, participa deste curta fazendo as vozes dos personagens, já que a captação do som foi feita de forma indireta. Em uma cena, faz a voz de quatro deles. Amarante é amigo de Nilson da época em que ambos faziam teatro com o poeta Ericson Pires no Rio de Janeiro. Ele atua na maior parte de seus filmes.
Mais velho não foi exibido em mostras, poucos o viram na época. “Não teve repercussão, mas o pessoal que participou achou legal e botou pilha de fazer mais.” Foi o que fez. Primitivo teve oito curtas de sua autoria exibidos em uma retrospectiva na MFL (Mostra do Filme Livre) do Rio de Janeiro em 2006, dentro do panorama “Cinema em Transe – Sessão Imprópria”, dedicado a experimentos radicais de linguagem, ao lado de produções de Jean Genet e John Lennon/Yoko Ono. A partir de então, seu trabalho começou a ganhar visibilidade e ele passou ser chamado para exibir seus filmes em outras mostras, como a que ocorreu em 2007 na Cinemateca Brasileira, com onze filmes, três deles feitos em SP.
Desconstrução do filme
“Ó o operário, o operário, o aristocrata, o aristocrata, onde que tá o aristocrata e o burguês e o operário?”*Impressão de deterioração do filme. Imagem e som em linhas diferentes, desconexas. Frases atravessam as imagens, praticamente se chocam com elas, diálogos? Recortes feitos por uma câmera insana, você não consegue prestar atenção no rosto dos… personagens? Fragmentos de músicas, rabiscos na tela, ruídos sonoros, música experimental, polifonia, tiroteio audiovisual e você…não consegue acompanhar? Mas… você queria entender o enredo? Achou que ia assistir a uma sessão de cinema? Perdeu mermão.
Primitivo utiliza negativos usados para fazer as filmagens. Os papéis são representados em sua maioria por amigos e a montagem dos filmes é feita na própria câmera
“Triunfou perdeu, a vida não é metafísica, é dialética, todo mundo, todo mundo, compreende, compreende meu camarada? Todo mundo que é classe média qué bejá o cú da princesa, tá compreendendo a situação, todo mundo que é classe média quer ser aristocratra.”
Primitivo utiliza negativos usados para fazer as filmagens. Os papéis são representados em sua maioria por amigos e a montagem dos filmes é feita na própria câmera. É ele mesmo quem faz a revelação dos negativos, utilizando banheiras ou potes tupperware. Os efeitos gerados nas imagens são em grande parte resultado de acidentes ocorridos durante esse processo.
A banda sonora é composta de recortes de diversos trechos de músicas, faixas de improvisação experimental de projetos dos selos independentes Fronha Records e LSDiscos, além das falas dos personagens que são captadas de forma indireta. Tudo propositadamente misturado e desencontrado com as imagens. Esse desencontro vem de uma mania de infância: “Pô, eu faço essa porra desde criança, essa demência de botar a imagem da televisão com o rádio falando e alguma outra música tocando ao mesmo tempo. No fundo já estava fazendo colagem”.Quanto aos diálogos, Primitivo utiliza trechos da obra de autores como Lewis Carroll e Michel Foucault, lidos pelos atores de forma extremamente coloquial, além de frases soltas que ouve de transeuntes ou de internos do IPUB (Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro), onde trabalhou. “Eu não invento nada, só recorto e colo, tenho o maior orgulho de falar. É claro que isso acaba criando um discurso, nem que seja apenas na minha cabeça.”
Diferentemente da geração de 1968, Nilson não vê nenhum problema no rótulo de marginal. “Marginal também é gente, é marginal mesmo, porque não?” Porém faz questão de deixar bem claro que não tem nada com a discussão em torno de Cinema Novo x Cinema Marginal. “Isso é briga intestina deles que são da elite. Não tenho absolutamente nada a ver com Glauber Rocha e Rogério Sganzerla. Eu gosto de Sady Baby, Mario Vaz Filho e Zé Adauto Cardoso, os três maiores cineastas e seres humanos que o país já teve.”
Aterrissagem em São Paulo
Ambiente escuro, imagens cruas projetadas nas paredes. Ora em branco e preto, ora com uma camada de cor sobreposta. Batidas eletrônicas aumentam o clima apocalíptico do lugar ao se fundirem e confundirem com as imagens em uma profusão desordenada de signos imagéticos e sonoros. Cenas filmadas na rua, uma garota se maquia com batom, um cara picha o muro com spray. Os dois conversam qualquer coisa enquanto a câmera passeia e faz recortes nada convencionais sobre eles, apenas imagens. Tão incomum quanto os filmes é o figura que opera o projetor e faz a seleção da trilha sonora. Alto, com cerca de 40 anos e os braços repletos de tatuagens, algumas de sua autoria. É o Nilsão, que projeta nas paredes do Sarajevo, na rua Augusta, algumas das cenas de seu primeiro curta-metragem feito em São Paulo, Gru (2006). No recinto as pessoas circulam, bebem, fumam e conversam enquanto acompanham a sucessão de imagens. Em seguida são exibidos também por Nilson, alguns filmes de William Burroughs, expoente da geração beatnik que utiliza em suas experimentações audiovisuais, feitas entre 1963 e 1972, a técnica de cut-up, forma de colagem desenvolvida em textos pelo dadaísta Tristan Tzara. Pérolas do cinema underground norte-americano. A música eletrônica aumenta a distorção do raciocínio já fragmentado pelas imagens.Nessa época, final de 2006, Nilson havia chegado recentemente a São Paulo, para morar. Fixara residência entre as ruas Aurora, Vitória e Guaianazes, o “triângulo das bermudas”, como ele define, onde “a boca, a zona e a delegacia convivem harmônica e inteligentemente, com elegância”. É nessa região que ele filma boa parte de Gru, como as cenas em que registra os ciganos da região. “As pessoas que vivem ali não leem livros, eles são livros, são todos personagens, os ciganos, aquele pessoal todo.”
Em 31 de maio de 2007 seus filmes são exibidos em uma sessão única na Cinemateca Brasileira. Ainda naquele ano, volta ao Rio a fim de dar andamento a outros projetos, como a filmagem da turnê de despedida do grupo Los Hermanos
Entre o final de 2006 e início de 2007, fez quatro filmes na cidade. Além de Gru – inspirado no personagem homônimo do livro A frente fria que a chuva traz, de Mário Bortolloto –, foram filmados Carta aos cegos – para aqueles que sabem ouvir e falar, construído a partir de uma poesia de Paulo de Tharso, o “Picanha”, Alerta aos carcereiros, com participação de Marcelo Colaiácovo, que trabalhava com José Mojica Marins, o Zé do Caixão, e Os sete cabeludos, filmado na Praça Roosevelt. Em 31 de maio de 2007, seus filmes foram exibidos em uma sessão única na Cinemateca Brasileira. Ainda naquele ano, retornou ao Rio a fim de dar andamento a outros projetos, como a filmagem da turnê de despedida do grupo Los Hermanos. Primitivo é o autor dos clipes de “Sentimental” (2002) e “O vento” (2004), ambos recusados pela MTV, mas disponíveis no Youtube, além do documentário Ventura, feito em 2004 em parceria com Sergio Lutz Barbosa. Foi para Curitiba trabalhar como técnico em uma filmagem sobre Paulo Leminski e aproveitou para fazer uma visita a Petter Baiestorf, autor catarinense de filmes gore.
Novamente em São Paulo, ainda em 2007, filmou Suíte oriental. Colaborou na montagem da retrospectiva dos cinquenta anos de carreira de Zé do Caixão organizada pelo CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil) em parceria com a Cinemateca Brasileira e com curadoria de Eugênio Puppo. Conhece Dennison Ramalho (Amor só de mãe, 2003) e Paulo Sacramento (O prisioneiro da grade de ferro, 2004), responsáveis respectivamente pelo roteiro e pela produção de Encarnação do demônio, filme de Mojica finalizado em 2007 e que fechou a trilogia iniciada com À meia-noite levarei sua alma (1964). Ramalho adaptou o roteiro original de 1966 e o transpôs do espaço rural para o urbano, e Sacramento, da produtora Olhos de Cão, produziu a película em parceria com a Gullane Filmes, dos irmãos Caio e Fabiano. O restante da verba veio através do Concurso de Baixo Orçamento do Ministério da Cultura. Primitivo foi informado de que o orçamento da produção já estava fechado e não teria como participar do filme, mas conseguiu autorização para realizar imagens dos bastidores, em 16mm, e com as quais fez o curta Hell No Honey, projetado no início de 2008 nas paredes da galeria Cinesol, na livraria Arquipélago, bairro da Liberdade, em uma de suas inúmeras passagens relâmpago por São Paulo. De quebra, ainda foi convidado a fazer um papel de zumbi no filme, devido à impossibilidade de o ator escalado comparecer às filmagens no dia. Em uma de suas incursões no set de Encarnação do demônio, colocou o filme do lado errado na câmera e, ao contar para Mojica do acidente, ouviu o seguinte: “Já fiz muito isso, a imagem fica ótima”.
De volta ao Rio fez o curta Constantinopla (2008), uma visão do tráfico isenta de qualquer moralismo e longe dos estereótipos encontrados nas produções nacionais que abordam o tema. Logo no início da película, uma moradora do morro anuncia: “o diabo não é tão feio quanto eles pintam”. Também no Rio trabalhou na montagem de uma mostra sobre o diretor Ozualdo Candeias – pioneiro do cinema marginal paulistano com seu filme A margem, de 1966. A mostra foi organizada através de uma parceria da Caixa Cultural do Rio de Janeiro com a Cinemateca Brasileira. Primitivo voltou a residir em São Paulo ainda em 2008. Filmou os bastidores da gravação do álbum Sou de Marcelo Camelo com a banda Hurtmold e captou imagens do Autoengano, projeto do selo LSDiscos. Foi a Salvador, onde fez a filmagem do DVD oficial de Camelo em uma apresentação do músico na Concha Acústica do Teatro Castro Alves, com a participação de Mallu Magalhães e Dominguinhos, acompanhados pela banda Hurtmold. A apresentação aconteceu dentro do projeto “Sua nota é um show”, promovido pelas secretarias de Cultura e Fazenda do Estado da Bahia. Atualmente, Primitivo trabalha nos clipes de “El hueco”, de Juliana R, e “Seringa”, dos Trovadores de Bordel.
Suíte oriental e Maldito ciclo lunar, são os trabalhos autorais mais recentes de Primitivo. Ambos foram finalizados em 2008 e estão disponíveis no Youtube. Maldito ciclo lunar é mais um experimento marginal de Primitivo com a presença de Rodrigo Amarante. Já Suíte oriental é uma homenagem à Sady Baby, o que pode ser detectado nos diálogos da película. A preocupação do autor, quando da filmagem da cena do assassinato de Suíte oriental, era se, após a revelação do negativo, as imagens ficariam minimamente visíveis. Ficaram, com todos os ruídos e nuances que um negativo vencido proporciona como resultado desse processo, realmente experimental, que é a confecção de seus filmes. Experimental porque ele joga com todas as variantes do processo fílmico como quem joga búzios, e acolhe abertamente os resultados para compor a película. No caso específico de Suíte oriental, a imprevisibilidade do resultado se manteve até o final da edição, quando surgiram várias versões, até que uma delas foi dada como definitiva. Na cena específica do assassinato, é possível distinguir aquilo que foi visto a olho nu durante a filmagem, mas de forma fragmentária e entremeada por clarões. A imagem se desfaz, a tela fica branca, surgem algumas abstrações em tom marrom, frutos de alguma provável deterioração do negativo, e então ressurge a imagem, sempre com a presença dos rabiscos e chuviscos que perambulam o tempo todo pela tela. Tudo isso somado aos gritos de “Puta que pariu” que emanam da faixa “DNA ou NADA”, do grupo Satã Bárbara.
* As falas foram tiradas do curta-metragem Mais velho (1999), de Nilson Primitivo. A forma coloquial e os propositais erros de português utilizados no filme foram mantidos.