Audálio Dantas, com as mãos no rosto, no velório de seu amigo Vladimir Herzog, assassinado pela repressão no DOI-Codi, em São Paulo. Fotografia de Elvira Alegre, outubro de 1975.

As missas de Audálio Dantas

Na última terça-feira, 5 de junho, na Catedral da Sé, em São Paulo foi realizada a missa de sétimo dia do jornalista alagoano Audálio Dantas, falecido na última quarta-feira (30 de maio) aos 88 anos no Hospital Premiê, também na capital paulista, em decorrência de um câncer de intestino com o qual lutava desde 2015.

“Há 5 dias, da uma da tarde às 8 da noite, quase mil pessoas acorreram ao Espaço Vladimir Herzog do Sindicato dos Jornalistas para participar do velório que celebrava sua longa vida. Gente de todas as áreas, gerações, sensibilidades políticas, religiosas e filosóficas. E ali estava o Audálio, mais vivo do que sempre. Dizendo a esse mar de humanos (por sua história de lutas e seu jeito de ser) que agora, mais do que nunca, era preciso empenho redobrado — de todos e de cada um — pela Democracia, pela Justiça, pela Paz.
Que as nuvens ameaçadoras, que a tempestade, que os presságios devem ser afastados para bem longe. Que não basta Deus querer. É preciso que o homem sonhe para que a obra nasça. Deitado, sereno, em meio ao vozerio dessas tantas pessoas que ali se reencontravam, Audálio ostentava no peito uma camiseta que lhe foi dada de presente de aniversário no último dia 8 de julho.

Nela, três palavras bordadas remetiam a um pensamento de Santo Agostinho:
Indignação, Coragem, Esperança. Disse Aurelius Augustinus Hipponensis (354–430 d.C. ): ‘A esperança tem duas lindas filhas: a indignação e a coragem. A indignação nos ensina a não aceitar as coisas como estão; a coragem, a mudá-las’. Esse foi Audálio Ferreira Dantas, que esteve por aqui durante 88 anos. Agora ficou eterno, como Vlado, Alexandre e Ricardo. Multiplicado em cada um de nós. Assim seja.”

Com essa fala carregada de simbolismos, o jornalista Sérgio Gomes encerrou a homenagem póstuma a Audálio, lembrando de outras mortes que foram veladas na mesma Catedral da Sé, “onde se chorou a perda e bradou-se contra a violência”: a do estudante Alexandre Vannuchi Leme (22), do jornalista Vladimir Herzog (38) e do carroceiro Ricardo Silva Nascimento (39).

Entre essas mortes, assassinatos cometidos por agentes da Ditadura Militar que se abateu sobre o país de 1964 a 1985, uma em especial liga o jornalista Sérgio Gomes à figura de Audálio Dantas, amigos próximos até o último momento: a de Vladimir Herzog.

“Começaram a prender jornalistas em outubro de 1975, e o Vlado estava na lista. Foram muitos mais, mas tinham doze jornalistas presos, na verdade sequestrados, todos eles foram levados para o DOI-Codi, sendo que o Vlado foi o último deles, era o décimo segundo. Houve aquele acordo pra ele se apresentar no dia seguinte, ele se apresentou e, no mesmo dia, 25 de outubro, foi morto sob tortura”, me contou Audálio em uma entrevista realizada em 2013.
Dos doze jornalistas presos naquela ocasião, Sérgio Gomes havia sido o primeiro, no dia 5 daquele mês. Na sequência vieram Frederico Pessoa da Silva, Ricardo Moraes Monteiro, Luiz Paulo Costa, Marinilda Marchi, Paulo Markun, Diléa Frate, Rodolfo Konder, George Duque Estrada, Anthony de Christo e José Vidal Pola Galé.

Nascido em Tanque D’Arca Audálio iniciou sua carreira em 1954 na Folha da Manhã (atual Folha de S. Paulo) e já havia escrito muitas histórias antes de se tornar ele próprio protagonista desta que envolveu a morte de um companheiro seu.

Na ocasião, Audálio era o presidente do Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo. Foi a nota da entidade a primeira a atribuir ao Estado a responsabilidade sobre a morte do jornalista e a denunciar o sequestro dos demais colegas, em uma resposta à nota oficial do II Exército, sediado em São Paulo, que afirmava que Herzog havia se suicidado.

“Não obstante as informações oficiais fornecidas pelo II Exército, em nota distribuída à imprensa, o Sindicato dos Jornalistas deseja notar que, perante a lei, a autoridade é sempre responsável pela integridade física das pessoas que coloca sob sua guarda. O Sindicato dos Jornalistas, que ainda aguarda esclarecimentos necessários e completos, denuncia e reclama das autoridades um fim a esta situação, em que jornalistas profissionais, no pleno, claro e público exercício de sua profissão, cidadãos com trabalho regular e residência conhecida, permanecem sujeitos ao arbítrio de órgãos de segurança, que os levam de suas casas ou de seus locais de trabalho, sempre a pretexto de que irão apenas prestar depoimento, e os mantêm presos, incomunicáveis, sem assistência da família e sem assistência jurídica, por vários dias e até por várias semanas, em flagrante desrespeito à lei. Trata-se de uma situação, pelas suas peculiaridades, capaz de conduzir a desfechos trágicos, como a morte do jornalista Vladimir Herzog, que se apresentara espontaneamente para um depoimento”, dizia o texto.

Sediado ainda hoje na rua Rego Freitas, na Vila Buarque, em São Paulo, o Sindicato dos Jornalistas foi o palco das reuniões que definiram o enfrentamento, que num primeiro momento era apenas da categoria, mas que logo ganhou a adesão de outros setores da sociedade, contra o regime de exceção.

“O processo de reação da sociedade em geral contra o assassinato do Vlado se deu a partir dessa manifestação que ocorreu primeiro no velório. O número de pessoas era grande, principalmente de jornalistas e artistas. E depois, no dia seguinte, durante o sepultamento, já havia cerca de mil pessoas presentes, e o processo seguiu com manifestações de diversos setores da sociedade até a realização do culto ecumênico”, como contou Audálio na mesma entrevista concedida em 2013.

Audálio durante o velório de Vladimir Herzog. Fotografia de Elvira Alegre.

A imagem acima mostra Audálio Dantas durante o velório de Herzog e foi feita pela jornalista Elvira Alegre, ligada ao jornal Ex, publicação da mídia alternativa produzido entre 1973 e 1975, com periodicidade mensal. A edição de outubro de 1975 denunciava em sua capa o assassinato de Herzog, mas as fotos acabaram não sendo publicadas. A edição vendeu 50 mil exemplares e acarretou o fechamento do jornal pelos militares.

“Eu só fui conhecer a foto dez anos depois do acontecimento. Então, quando tomei conhecimento dela, procurei na minha mente restabelecer aquele momento e não consegui saber se eu estava dormindo, cochilando — porque eu estava há uma semana praticamente sem dormir — , ou se eu estava apenas numa atitude de meditação sobre o que deveria ser feito”, disse Audálio na entrevista.

 

Velório de Vladimir Herzog. Fotografias de Elvira Alegre.

 

O velório foi realizado no Hospital Albert Einstein no dia seguinte à morte de Herzog e contou com uma vigília de jornalistas ligados ao sindicato. O enterro aconteceu no dia seguinte, no Cemitério Israelita, e ao final foi convocada uma nova reunião na sede da entidade para definir os próximos passos. O momento foi assim registrado no livro de Audálio, As duas guerras de Vlado Herzog: da perseguição nazista na Europa à morte sob tortura no Brasil (Civilização Brasileira, 2012):

“Agora a urgência era para que o caixão descesse à sepultura. De repente, não sei a partir de que instante, vi-me segurando, com outras pessoas, uma corda que sustinha o caixão, que começou a descer. Imediatamente, munido de uma pá, o homenzinho começou a jogar terra na cova, atropelando a tradição [judaicaque dá aos parentes diretos do morto a primazia de atirar os primeiros punhados de terra.

Muitos carros que seguiram o cortejo ainda não haviam chegado ao cemitério, entre eles o que levava dona Zora, mãe de Vlado. Apesar da idade avançada, ela caminhava depressa, quase correndo, mas só conseguiu chegar ao túmulo quando os homens da kadisha jogaram as últimas pás de terra sobre o corpo do filho.

[…]

Um grito, que não se sabe de quem partiu, convocou:

— Vamos para o Sindicato!

Começava ali, imediatamente, a convocação para o que se transformaria numa formidável assembleia extraordinária. Alguém se aproximou de mim, perguntando a que horas seria a reunião. Não me detive a pensar, respondi automaticamente: ‘Às seis horas’. A convocação foi passando, em voz baixa, de boca em boca: ‘Reunião no Sindicato, às seis horas’.”

Naquela reunião, decidiu-se batizar o auditório com o nome do jornalista morto. O jornalista David de Moraes propôs a mobilização em torno de uma missa de sétimo dia, mas, sendo Vlado judeu, optou-se por um culto ecumênico, realizado na Catedral da Sé no dia 31 de outubro de 1975.

Naquele dia, Audálio teve a ideia de escrever um livro sobre o episódio do qual participara ativamente, projeto que só seria concretizado em 2012, mais de trinta anos depois — certamente sua reportagem mais longa.

“O projeto do livro nasceu no exato momento em que, descendo as escadarias da Catedral da Sé, em São Paulo, vi a multidão — 8 mil pessoas — que participara, em protesto silencioso, do culto ecumênico à memória de Vladimir Herzog escoar-se pelas esquinas da praça que, aos poucos, se esvaziou. Aquele vazio, no fim da tarde de 31 de outubro de 1975, estava carregado de simbolismos. […] O Brasil inteiro estava em suspenso naquele momento em que, na previsão sinistra de uma autoridade, tudo poderia acontecer. Mas o vazio da praça tinha o sentido de um marco na luta contra a ditadura que, no dizer de um dos oficiantes do ato ecumênico, dom Helder Câmara, começava a cair naquele instante. Ao descer as escadarias da catedral tive a certeza de estar vivendo o início de um novo capítulo na história das lutas do povo contra a opressão”, escreveu Audálio.

 

Audálio Dantas fala durante culto ecumênico em homenagem a Herzog. Imagens do documentário “Vlado — 30 anos depois” de João Batista de Andrade

 

A ditadura militar estava nas mãos do general Ernesto Geisel, que ocupava então a presidência do país. Naquele momento ainda não se sabia, mas Geisel havia autorizado, em 1º de abril do ano anterior — exatos dez anos após o Golpe de 1964 — a execução de opositores do regime que fossem considerados subversivos. A informação só foi revelada este ano em um documento da CIA tornado público recentemente pelo governo norte-americano.

Na missa de Audálio, a catedral não estava lotada. Nos bancos próximos ao altar se sentavam figuras históricas do jornalismo brasileiro, hoje já quase esquecidas pelo grande público, junto de quadros conhecidos da esquerda paulistana e familiares de Dantas. Quando dom Odílio Scherer encerrou a missa, houve muitos abraços fraternos, e então as pessoas logo se escoaram pelas portas da igreja e desapareceram pelas ruas do centro da cidade. Não houve gritos por “Diretas já”, nem “Lula livre”, e muito menos um cardeal pregando que nossa democracia em breve renasceria. Por isso mesmo, é preciso reviver Audálio. Audálio vive!