Agora que sou mais velho, essa caracterização dos dois lados me parece menos convincente. Os papéis de opressor e de oprimido por vezes são claros, mas nem sempre, e o conceito de “classe” que dá suporte a essa oposição é útil, mas não tem a aplicabilidade universal que eu costumava esperar dele. O que aquela frase de efeito faz — “quem não escolhe lado algum já escolheu um dos lados” — é conferir dimensões desproporcionais para traços reais do objeto que ela representa. Assim, se marcamos uma risca no nosso campinho e dizemos: “daqui pra cá, os vermelhos, daqui pra lá, os amarelos”, é óbvio que não esgotamos o espectro das cores — mas talvez a divisão nos mostre algo a respeito de como essas cores se opõem e, com isso, nos ensine algo a respeito do espectro ele mesmo. Colocando um grão de sal naquela palavra de ordem, talvez a coisa fique mais ou menos assim: não é que quem não escolhe lado algum já escolheu um dos lados; o fato é que quando falamos de futebol, política ou religião, quando decidimos em qual supermercado faremos nossas compras, qual o nosso serviço de streaming, se iremos de ônibus, uber, 99 ou táxi, se milho ou puro malte, se fazemos um bate-volta para Praia Grande ou se achamos essa ideia repugnante, se vamos ou não postar um comentário mordaz em uma rede social — em cada um desses casos nós nos colocamos ao lado de alguém. Nem sempre estaremos ombro a ombro com as mesmas pessoas, mas em cada um desses casos tendemos a nos situar num mesmo campo, com o mesmo time. E, ainda que o mundo não seja tão simples, isso não muda o fato de que cada uma de nossas ações é animada por valores — que podem, com alguma imprecisão, ser colocados em uma destas duas caixinhas: ou apostamos na nossa capacidade de construir um futuro diferente do passado, ou brigamos contra quem quer um futuro diferente do passado; ou somos progressistas ou conservadores.
Não é como se argumentos, esclarecimentos ou boa vontade bastassem para inverter posições. […] E se, do alto de nossa intelectualidade esquerdista, julgamos que podemos “desconstruir” a posição do nosso interlocutor, rapidamente percebemos que nossas chaves Philips não entram nas fendas dos parafusos com os quais os conservadores constroem o seu mundo
Esse desenho do espectro político em dois campos valorativos deve nos ajudar a entender algo que está cada vez mais claro em nossas conversas sobre política nos últimos anos. Quando os conservadores se opõem aos progressistas, ou vice-versa, o que está em jogo não são discordâncias. Não é como se argumentos, esclarecimentos ou boa vontade bastassem para inverter posições. E quando pensamos “não é possível que ela não perceba que…”, ou “ele não pode ser tão estúpido a ponto de realmente achar que…”, incorremos no erro de imaginar que o mundo do lado de cá do campinho é formado da mesma matéria que o mundo do lado de lá. Não é. E se, do alto de nossa intelectualidade esquerdista, julgamos que podemos “desconstruir” a posição do nosso interlocutor, rapidamente percebemos que nossas chaves Philips não entram nas fendas dos parafusos com os quais os conservadores constroem o seu mundo. Se, por exemplo, nos parece absurdo o encarceramento em massa, a eles parece absurdo cuidar de bandido; se os oligopólios de comunicação nos parecem um desserviço ao jornalismo e à liberdade de expressão, eles lutariam até mesmo ao lado da Rede Globo, esse antro gayzista de fake news, para defender… a liberdade de expressão; se para nós a escola laica deve educar os jovens, para eles a família é inviolável em seu direito de passar adiante suas crenças. Não há conversa possível aqui, porque cada lado monta o problema com peças inacessíveis às ferramentas de que o outro lado dispõe. De uns anos para cá, é excesso de credulidade pensar que é possível um “trabalho de esclarecimento”; estamos em pé de guerra, e o trabalho a ser feito é o da disputa. De um lado, os valores de quem acha que bom mesmo é aquilo que os nossos avós já sabiam e faziam, e que veem em Trump e Bolsonaro a promessa da retomada de um mundo perdido, mas recuperável; de outro, os valores de quem vê a humanidade como destinada a se transformar indefinidamente, e que usará e abusará da tradição apenas como um meio de autossuperação e ininterrupto melhoramento. Os amarelinhos e os vermelhinhos, se vocês quiserem.
Agora, se nos convencemos de que a briga é por valores, precisamos então explorá-los e examiná-los meticulosamente; precisamos auscultar onde nos doem mais os avanços do lado de lá; precisamos achar o calcanhar de Aquiles deles, e lançar ali as nossas flechas. Se, em algumas situações, o brasileiro exibe os apetites mais regressivos, em outras ele levanta sua cabeça acima do nevoeiro espesso que é a tradição e mira objetivos mais distantes — precisamos entender essas situações uma a uma. Como a guerra aqui não se faz por aniquilação, mas por ganho de terreno, precisamos buscar as estratégias para, por vezes, tirar a força e o peso dos valores regressivos, e, por vezes, colocar toda a força e o peso nos valores progressistas — e, com isso, trazer aliados às nossas fileiras. Qualquer que seja a estratégia, devemos antes organizar nossa casa e entender o opositor. Isso implica entender quais valores nos unem e, talvez mais importante que isso, entender profundamente como operam os valores que se opõem às nossas formas de vida e às formas de vida que queremos, e iremos, implementar.
Trata-se, acima de tudo, de um trabalho lento e diligente, de pequenos avanços de compreensão e pequenas tomadas de território. Os progressos que fizermos em nossa disputa de valores serão muito gradativos. Por isso nossas reflexões terão de ser vendidas de porta em porta, à boca pequena. Nosso progressismo, a partir de agora, será assim: a varejo — pois passou o tempo em que pensávamos por atacado, em grandes temas, com esperanças de conquistas grandiosas e largos avanços. Com um passo de cada vez — é assim que, como progressistas, avançaremos.
Giovanni Rossi é doutor em filosofia, com pesquisas em lógica, ética e filosofia da linguagem. Hoje atua como professor no ensino médio e em universidades.