Progressismo a varejo
Passou o tempo em que pensávamos por atacado, em grandes temas, com esperanças de conquistas grandiosas e largos avanços Passou o tempo em que pensávamos por atacado, em grandes temas, com esperanças de conquistas grandiosas e largos avanços
ilustração de Gleise Karrara
por Giovanni Rossi por Giovanni Rossi
Quando eu era menino, me disseram que quem não escolhe lado algum já escolheu um dos lados. Ouvi isso muitas outras vezes mais tarde, de várias outras bocas — e, olhando em retrospecto, percebo agora que, em todas as ocasiões, essa posição era uma variação da oposição oprimido-opressor, que dizia: quem não escolhe um lado resvala necessariamente para o do opressor. Aliás, isso estava em estrita consonância com o modo correto de definir o espectro político: do lado de lá os opressores, os burgueses, os ricos e defensores dos ricos, os inimigos dos trabalhadores, os apologetas do capitalismo e devotos da mão invisível; do lado de cá os oprimidos (e seus simpatizantes), os pobres (e seus simpatizantes), os trabalhadores (e seus simpatizantes), os anticapitalistas e os crentes no poder equitativo do Estado.

Agora que sou mais velho, essa caracterização dos dois lados me parece menos convincente. Os papéis de opressor e de oprimido por vezes são claros, mas nem sempre, e o conceito de “classe” que dá suporte a essa oposição é útil, mas não tem a aplicabilidade universal que eu costumava esperar dele. O que aquela frase de efeito faz — “quem não escolhe lado algum já escolheu um dos lados” — é conferir dimensões desproporcionais para traços reais do objeto que ela representa. Assim, se marcamos uma risca no nosso campinho e dizemos: “daqui pra cá, os vermelhos, daqui pra lá, os amarelos”, é óbvio que não esgotamos o espectro das cores — mas talvez a divisão nos mostre algo a respeito de como essas cores se opõem e, com isso, nos ensine algo a respeito do espectro ele mesmo. Colocando um grão de sal naquela palavra de ordem, talvez a coisa fique mais ou menos assim: não é que quem não escolhe lado algum já escolheu um dos lados; o fato é que quando falamos de futebol, política ou religião, quando decidimos em qual supermercado faremos nossas compras, qual o nosso serviço de streaming, se iremos de ônibus, uber, 99 ou táxi, se milho ou puro malte, se fazemos um bate-volta para Praia Grande ou se achamos essa ideia repugnante, se vamos ou não postar um comentário mordaz em uma rede social — em cada um desses casos nós nos colocamos ao lado de alguém. Nem sempre estaremos ombro a ombro com as mesmas pessoas, mas em cada um desses casos tendemos a nos situar num mesmo campo, com o mesmo time. E, ainda que o mundo não seja tão simples, isso não muda o fato de que cada uma de nossas ações é animada por valores — que podem, com alguma imprecisão, ser colocados em uma destas duas caixinhas: ou apostamos na nossa capacidade de construir um futuro diferente do passado, ou brigamos contra quem quer um futuro diferente do passado; ou somos progressistas ou conservadores.

Não é como se argumentos, esclarecimentos ou boa vontade bastassem para inverter posições. […] E se, do alto de nossa intelectualidade esquerdista, julgamos que podemos “desconstruir” a posição do nosso interlocutor, rapidamente percebemos que nossas chaves Philips não entram nas fendas dos parafusos com os quais os conservadores constroem o seu mundo

Esse desenho do espectro político em dois campos valorativos deve nos ajudar a entender algo que está cada vez mais claro em nossas conversas sobre política nos últimos anos. Quando os conservadores se opõem aos progressistas, ou vice-versa, o que está em jogo não são discordâncias. Não é como se argumentos, esclarecimentos ou boa vontade bastassem para inverter posições. E quando pensamos “não é possível que ela não perceba que…”, ou “ele não pode ser tão estúpido a ponto de realmente achar que…”, incorremos no erro de imaginar que o mundo do lado de cá do campinho é formado da mesma matéria que o mundo do lado de lá. Não é. E se, do alto de nossa intelectualidade esquerdista, julgamos que podemos “desconstruir” a posição do nosso interlocutor, rapidamente percebemos que nossas chaves Philips não entram nas fendas dos parafusos com os quais os conservadores constroem o seu mundo. Se, por exemplo, nos parece absurdo o encarceramento em massa, a eles parece absurdo cuidar de bandido; se os oligopólios de comunicação nos parecem um desserviço ao jornalismo e à liberdade de expressão, eles lutariam até mesmo ao lado da Rede Globo, esse antro gayzista de fake news, para defender… a liberdade de expressão; se para nós a escola laica deve educar os jovens, para eles a família é inviolável em seu direito de passar adiante suas crenças. Não há conversa possível aqui, porque cada lado monta o problema com peças inacessíveis às ferramentas de que o outro lado dispõe. De uns anos para cá, é excesso de credulidade pensar que é possível um “trabalho de esclarecimento”; estamos em pé de guerra, e o trabalho a ser feito é o da disputa. De um lado, os valores de quem acha que bom mesmo é aquilo que os nossos avós já sabiam e faziam, e que veem em Trump e Bolsonaro a promessa da retomada de um mundo perdido, mas recuperável; de outro, os valores de quem vê a humanidade como destinada a se transformar indefinidamente, e que usará e abusará da tradição apenas como um meio de autossuperação e ininterrupto melhoramento. Os amarelinhos e os vermelhinhos, se vocês quiserem.

Agora, se nos convencemos de que a briga é por valores, precisamos então explorá-los e examiná-los meticulosamente; precisamos auscultar onde nos doem mais os avanços do lado de lá; precisamos achar o calcanhar de Aquiles deles, e lançar ali as nossas flechas. Se, em algumas situações, o brasileiro exibe os apetites mais regressivos, em outras ele levanta sua cabeça acima do nevoeiro espesso que é a tradição e mira objetivos mais distantes — precisamos entender essas situações uma a uma. Como a guerra aqui não se faz por aniquilação, mas por ganho de terreno, precisamos buscar as estratégias para, por vezes, tirar a força e o peso dos valores regressivos, e, por vezes, colocar toda a força e o peso nos valores progressistas — e, com isso, trazer aliados às nossas fileiras. Qualquer que seja a estratégia, devemos antes organizar nossa casa e entender o opositor. Isso implica entender quais valores nos unem e, talvez mais importante que isso, entender profundamente como operam os valores que se opõem às nossas formas de vida e às formas de vida que queremos, e iremos, implementar.

Trata-se, acima de tudo, de um trabalho lento e diligente, de pequenos avanços de compreensão e pequenas tomadas de território. Os progressos que fizermos em nossa disputa de valores serão muito gradativos. Por isso nossas reflexões terão de ser vendidas de porta em porta, à boca pequena. Nosso progressismo, a partir de agora, será assim: a varejo — pois passou o tempo em que pensávamos por atacado, em grandes temas, com esperanças de conquistas grandiosas e largos avanços. Com um passo de cada vez — é assim que, como progressistas, avançaremos.

Giovanni Rossi é doutor em filosofia, com pesquisas em lógica, ética e filosofia da linguagem. Hoje atua como professor no ensino médio e em universidades.

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