O vírus atrás das grades
Um funcionário da Penitenciária II de Sorocaba relata o cotidiano da prisão durante a pandemia Um funcionário da Penitenciária II de Sorocaba relata o cotidiano da prisão durante a pandemia
ilustração de Gleise Karrara
por Richard Sanches por Richard Sanches

• Ouça o episódio de Cartas na Mesa sobre covid-19 nos presídios, com o depoimento de Luiz Eduardo Rossini.

Numa terça-feira normal, Luiz Eduardo Rossini teria acordado às 4h30 da manhã, tomado banho, preparado o café e entrado em seu carro para começar a percorrer os cerca de vinte quilômetros até a Penitenciária II de Sorocaba, onde trabalha como psicólogo desde fevereiro de 2020. Mas naquela terça-feira ele ficou em casa: tinha testado positivo para a covid-19 e estava de quarentena. Luiz tem 37 anos, é natural de Sorocaba e se formou em psicologia pela Universidade Estadual de Londrina, no Paraná. Foi na faculdade que conheceu a esposa, Eloísa, três anos mais jovem e também psicóloga. O casal tem uma filha, Ana Beatriz, de treze anos, e foi no quarto dela que Luiz se instalou após a confirmação de que tinha se infectado com o novo coronavírus. A filha, por sua vez, passou a dividir com a mãe o quarto do casal.

Ele trabalha no sistema prisional paulista já há pouco mais de sete anos, mas até então estava lotado no Centro de Detenção Provisória (CDP), no mesmo município. O motivo para acordar tão cedo é que ele entra na penitenciária às seis da manhã. Ao meio-dia, encerra o expediente, almoça ainda no presídio e depois dirige mais trinta quilômetros, até o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) de Iperó, uma cidade vizinha, onde ele trabalha como coordenador. Concluída a segunda jornada de seis horas, ele enfim pega a estrada de volta para casa.

São poucos os funcionários do seu entorno que entram no mesmo horário que ele no presídio. Por isso, Luiz passa os primeiros momentos do dia trabalhando sozinho na sala da equipe de reintegração, da qual faz parte. Rose, uma senhora magra e baixa, de cabelos grisalhos curtos e óculos de lentes grossas, é a oficial administrativa, e costuma aparecer por volta das 6h40 – embora seu expediente só comece de fato às sete. Quando Daniela, a diretora do departamento, chega ao escritório, às oito, a equipe de reintegração está completa.

Em 1990, quando foi inaugurada, a Penitenciária II – ou P2, como costuma ser chamada – era um presídio de segurança máxima, com uma capacidade bem reduzida, para apenas quinhentos presos, como ocorre ainda hoje com esse tipo de presídio no estado de São Paulo. Com o tempo, esse perfil foi se alterando, até que, no início dos anos 2000, ela foi transformada em uma unidade restrita aos condenados por crimes sexuais.

A superlotação fica aparente nas celas, onde 20 a 30 pessoas dividem o espaço originalmente reservado a 8 ou 10

De acordo com dados da Secretaria de Administração Penitenciária, no dia 21 de julho de 2020 sua população total era de 2.087 presos, sendo 1.768 no regime fechado e 319 no semiaberto, ainda que sua capacidade total seja de apenas 935 detentos. A superlotação fica aparente nas celas, onde 20 a 30 pessoas dividem o espaço originalmente reservado a 8 ou 10. Segundo Luiz, “eles são organizados e, na medida do possível, tentam deixar o espaço limpo, porque é o ambiente deles”. Mesmo assim, é difícil manter as condições de higiene. O banho gelado, por exemplo, não é um grande incentivo ao asseio pessoal, e o cheiro que emana das celas é descrito como uma mistura de comida, lixo e suor.

O fato de a unidade ser reservada a condenados por crimes sexuais também lhe confere certas características que, no contexto da pandemia, influenciam na comorbidade dos presidiários. A idade média dos presos que chegam lá é de 30 anos e, como os crimes de agressão sexual têm punições legais bem severas, e não raro são cometidos mais de uma vez pelo criminoso, a somatória das penas costuma alcançar entre 15 e 20 anos de regime fechado e mais alguns de semiaberto. Ou seja, a população da unidade é mais velha e, em decorrência da idade, portadora de outras doenças – de acordo com um levantamento do presídio, cerca de 25% dos presos ali se enquadram no grupo de risco. “Só nesses poucos meses em que estou no cargo, já entrevistei um [preso] cego, dois cadeirantes, um outro com Alzheimer já bem avançado, outro com surdez quase total”, contou Luiz. Um fato curioso é que, nessa unidade, alguns detentos mais jovens acabam trabalhando como cuidadores dos mais velhos e, com isso, conseguem a remissão de parte da pena.

O trabalho de Luiz na penitenciária, desde que chegou, em fevereiro, tem se resumido à realização de exames criminológicos, que são solicitados pelos juízes para averiguar a possibilidade de progressão de regime dos presos. Antes da pandemia, e da consequente mudança dos protocolos, ele atendia cerca de oito detentos por semana. Além da entrevista, há a aplicação de um teste e, depois, a leitura do prontuário do preso e a discussão do caso com a equipe para, então, produzir o relatório que será encaminhado ao juiz. Com a adoção das medidas de biossegurança, houve uma pequena redução no número de entrevistas para seis por semana, em média, e elas se davam com o devido distanciamento e os equipamentos de proteção, incluindo o face shield, o escudo de acrílico que cobre todo o rosto.

Nas entrevistas, Luiz aborda o contexto familiar desses sujeitos que tiveram sua liberdade cerceada, se mantêm contato com pais, irmãos, companheira(o), se recebem visitas, trocam cartas etc. Para os que estão no semiaberto, ele questiona, entre outras coisas, se fazem saídas temporárias, se trabalham ou estudam. E, obviamente, Luiz interpela a todos, independentemente do regime, a respeito de seus crimes. “Alguns optam por não contar nada, em geral por constrangimento, porque ali são crimes sexuais. Mas é fundamental procurar entender que tipo de reflexão eles fizeram enquanto estiveram presos e o que pretendem mudar na vida e no comportamento deles para evitarem cometer outro crime futuramente”, revelou.

Luiz tem, portanto, uma boa noção do que pensam e de como se sentem os detentos durante a pandemia – e a pandemia mudou completamente o cotidiano da unidade. Houve a suspensão das saídas temporárias, as chamadas “saidinhas”, e o trabalho externo dos presos do semiaberto também foi interrompido. As celas são borrifadas com uma solução de cloro e amônia e, nos espaços fora delas, como o pátio, tornou-se obrigatório o uso de máscaras. Para os funcionários, todas as salas são higienizadas várias vezes por dia.

Como há mais de oitenta celas, o revezamento pode deixar o preso dois ou três dias sem o banho de sol

Algumas medidas adotadas, no entanto, tiveram grande impacto nos detentos, em termos tanto físicos quanto psicológicos. Para evitar aglomerações, houve redução do tempo de banho de sol, que passou a ser feito em rodízio, com uma cela por vez, durante apenas uma hora. Como há mais de oitenta celas, o revezamento pode deixar o preso dois ou três dias sem o banho de sol. Assim, a angústia deles aumenta na proporção que diminuem seus níveis de vitamina D, e até mesmo a questão da higiene é afetada. Isso porque é durante os banhos de sol que as celas são limpas: enquanto a maioria dos presos sai, permanecem na cela dois ou três deles responsáveis pela faxina. Agora, como o banho de sol demora mais para ocorrer, fica mais difícil manter o asseio do ambiente com todos lá dentro.

Várias dessas medidas se encontram na portaria 135, de 18 de março de 2020, assinada pelo então ministro da Justiça Sérgio Moro. Além de suspender as visitas e saidinhas, a portaria sugeria, ainda, conforme nota no site do Ministério, que o regime domiciliar deveria “ser concedido apenas aos presos que se enquadram legalmente ao regime, que tenham estrutura familiar, com o devido monitoramento da pena por meio das tornozeleiras eletrônicas”. Nesse sentido, a portaria era uma resposta à recomendação nº 62/2020 do Conselho Nacional Justiça (CNJ), emitida no dia anterior e que orientava os magistrados a reavaliar “prisões provisórias, especialmente quanto a grupos mais vulneráveis (como mães, portadores de deficiência e indígenas) ou quando o estabelecimento estiver superlotado ou sem atendimento médico”, além de recomendar, também, “a reavaliação de prisões preventivas com prazo superior a noventa dias ou que resultem de crimes menos graves”. Para um governo que sempre defendeu a morte de bandidos, a pandemia não podia ser desculpa para impunidade.

O veto às visitas, que também estão temporariamente proibidas, foi o que mais impactou os detentos. Segundo Luiz, “individualmente, nos atendimentos que faço nessas avaliações, dá pra ver que eles têm sentido mais a falta da família. E talvez a ausência de atividades mesmo. Uma parte trabalhava, estudava ou fazia alguma atividade física, e tudo isso deixou de acontecer”. Dessa forma, o único meio de manterem contato com o mundo exterior é através das cartas, que passaram a ser trocadas com mais frequência.

Até o dia 14 de junho de 2020, a P2 havia contabilizado catorze casos de covid-19, sendo metade destes entre os presos e a outra metade entre os funcionários. Todos foram considerados graves em alguma medida, o que demandou que fossem testados. Dos detentos, três vieram a óbito durante a primeira quinzena de abril. Por ter sido a primeira penitenciária do estado a registrar mortes pela covid-19, a unidade foi escolhida para um projeto piloto de testagem em massa, realizado por meio de uma parceria do governo do estado com o Instituto Butantã. Entre os dias 15 e 19 de junho, todos os presos e funcionários foram testados. E assim as estatísticas saltaram: constatou-se que 40% dos detentos estavam infectados pelo novo coronavírus, além de dezessete funcionários, que foram logo afastados – entre eles, Luiz.

Em abril, Luiz havia desenvolvido alguns sintomas, como febre alta, dor de cabeça e dor no corpo. Ao procurar uma médica, ouviu dela que, de acordo com o protocolo então adotado, por não ter desenvolvido nenhuma disfunção respiratória, ele não seria testado para covid-19 naquele momento. A médica solicitou testes de dengue, que deram negativo. Como que por exclusão, ela diagnosticou o quadro de Luiz como de H1N1, mesmo sem nenhum exame que o comprovasse.

Na terça-feira, 16 de junho, Luiz trabalhou até as oito da manhã, então desceu até o andar onde estavam sendo feitos os testes. “Foi meio enrolado, porque tinha muita tecnologia envolvida, tinha gente do Instituto Butantã, os estudantes de enfermagem da Etec [Escola Técnica Estadual] de Sorocaba, tinha gente do laboratório que cedeu a tecnologia, o pessoal da coordenadoria da Secretaria de Administração Penitenciária, nossos superiores que ficam em Campinas ou em São Paulo… Como era um projeto piloto, uma novidade, tinha gente de tudo quanto é lugar”, disse Luiz. Havia toda uma série de procedimentos que tinham de ser realizados todos os dias antes da testagem: preparar as salas, ligar os computadores, conectar o sistema com o do laboratório, tirar as centenas de testes das embalagens etc. Por isso, Luiz só conseguiu ser testado às nove da manhã.

“Então, voltei para a minha sala, fui fazer os atendimentos dos presos do semiaberto e, quando terminei tudo, recebi o resultado por e-mail, umas três horas depois de ter feito o teste. Eu tinha reagido positivamente ao teste de anticorpos. Fiquei um pouco surpreso, mas não em choque, porque já havia aquela suspeita quando eu tinha sido diagnosticado com H1N1 sem ter feito nenhum exame. Mas não deixa de ser impactante quando você recebe a confirmação”, declarou Luiz.

Depois de ver o resultado, ele deixou recado para sua superior de que havia testado positivo para o vírus. Mais tarde, ela lhe informou por WhatsApp que ele deveria passar em um hospital para pegar o atestado médico que lhe garantiria sair de quarentena. “Naquele dia, ainda fui trabalhar em Iperó. Lá, seguimos o protocolo de distanciamento, mas o pessoal ficou um pouco assustado. Foi só depois que saí do Creas que fui para o Hospital Modelo. Ali, fiquei com outros pacientes no espaço chamado de ‘setor da covid’. Tinha muita gente nesse dia, e fui sair de lá quase meia-noite”, reclamou.

Chegando em casa, a rotina familiar teve de ser alterada imediatamente. Adaptaram tudo, os banheiros, os quartos e as partes dos cômodos que ele poderia usar para manter a distância necessária da filha e da esposa. Elas não chegaram a ser testadas, mas não desenvolveram nenhum sintoma. Como precisou ficar em casa para cumprir a quarentena, Luiz não acompanhou a reação dos presos após a testagem e a constatação de que quase metade deles tinha contraído o vírus. Ele retornou ao trabalho no dia 30 de junho e retomou a rotina de entrevistas, agora menos paramentado – protegido apenas com máscara e luvas.

Há entre os presos religiosos o sentimento de que o vírus pode ser vencido pela fé

Uma boa parte das celas tem aparelhos de TV, mas os presos dão preferência às novelas e aos programas religiosos, em detrimento dos noticiários. Por isso, as informações sobre a pandemia se resumem ao que é passado pelos funcionários ou ao que chega pelas cartas e então circula entre pelo presídio. Para Luiz, mesmo quem não era religioso antes de entrar na prisão acaba se tornando lá dentro, pois “é uma questão de sobrevivência”. E a religião pode ser um fator que explica a não tão grande preocupação dos detentos com a covid-19: há entre os presos religiosos o sentimento de que o vírus é algo que pode ser vencido pela fé, enquanto outros podem acreditar que, por estarem ali confinados, estão mais seguros, como explicou Luiz.

Mas nem todas as penitenciárias adotaram as mesmas medidas. O Centro de Detenção Provisória (CDP), onde Luiz trabalhava anteriormente, por exemplo, demonstrou certo descaso com a pandemia. “Conversei com a assistente social e a psicóloga que continuam atendendo lá. Elas estavam bem insatisfeitas com a condução da crise na unidade, principalmente com relação às questões de biossegurança”, disse ele. No CDP, o potencial de mortalidade do vírus foi minimizado, talvez ecoando o ponto de vista do governo federal, e assim os atendimentos dessas funcionárias continuaram a todo vapor. Como ambas têm mais de cinquenta anos, elas tiveram de dar um jeito de se afastar do trabalho, para proteger a família e elas mesmas.

No dia 9 de julho, o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), João Otávio de Noronha, atendeu ao pedido da defesa do ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro, Fabrício Queiroz, para que este cumprisse prisão domiciliar. Um dos argumentos seguia a linha da recomendação emitida pelo CNJ a respeito do contexto da covid-19, uma vez que Queiroz tem outros problemas de saúde. O benefício se estendeu ainda à esposa dele, que estava foragida. Márcia Aguiar pôde, então, “cuidar do marido” em casa, como sugeriu o ministro que lhe concedeu a prisão domiciliar. Sobre Noronha, o presidente Bolsonaro já havia dito, em certo momento, que se tratava de “amor à primeira vista”, e não falta quem sugira que uma das próximas vagas do Superior Tribunal Federal (STF) será destinada a ele.

À luz da preocupação humanitária demonstrada pelo presidente do STJ com relação à família Queiroz, no dia 10 de julho o Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu) impetrou um habeas corpus coletivo que beneficiaria pessoas de grupos de risco detidas por crimes sem violência, em consonância com a recomendação do CNJ. Em 23 de julho Noronha negou o pedido. Dessa vez faltou o amor.

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