Volto para cumprir a promessa, leitor. Da última vez que nos encontramos nesta coluna, afirmei que as ficções são um modo de dar alguma materialidade aos nossos valores. E disse que há critérios para distinguir boa e má ficção (assim como há critérios para distinguir bons e maus valores). Se não estiver convencido, volte uns dias e encontrará a humilde argumentação deste escrevinhador. Mas, para sumarizar: há as ficções que nos fazem ver melhor o mundo, ao mesmo tempo que embelezam a realidade. Há outras que simplesmente nos alienam do mundo, num escapismo pueril e trivial. Este tipo de ilusão, digo agora, tem grande potencial para nos lançar em labirintos, para nos turvar a realidade diante de nossos olhos, para nos levar a comprar gatos por lebres. E há, é claro, muita coisa que fica entre esses dois extremos.
Veja, então, o caso em pauta: o ótimo filme de Taika Waititi (que, aliás, ganhou há uns meses o Oscar de roteiro adaptado) parece corroborar a tese da semana passada: a de que nossas ficções moldam nosso mundo. Ele ilustra, na verdade, um caso particular dessa tese geral. As ficções infantis moldam os mundos das crianças: os pequenos realmente veem os monstros, fadas, castelos e mundos perdidos que inventamos para elas. Seu próprio poder de ficcionalizar parece ilimitado: Hitler realmente vivia ao lado de Jojo, assim como Haroldo vive ao lado de Calvin — que ambos sejam imaginários não faz nenhuma diferença; o efeito que eles causam é igualmente real. Não é à toa que Platão inicia a fundação de sua cidade ideal (nos livros II e III de sua obra-prima) triando cautelosamente o tipo de ficção a que as crianças seriam submetidas. Platão sabia que as virtudes (nós diríamos “valores”) incorporadas por heróis e deuses nas epopeias iriam moldar a alma dos cidadãos, a constituição da cidade, todo o seu aparato psíquico e epistemológico, seu modo de ver o mundo. O Hitler de Jojo molda seu mundo, ao mesmo tempo que materializa seus valores.
O filme tem mais momentos altos: linda fotografia, atuações tocantes dos protagonistas; uma composição que funciona — identificamo-nos com o herói, que tem sua cegueira, seus percalços, sua epifania, sua transformação; os pequenos detalhes dos planos que mostram o fascínio do menino pelos pés da mãe, até que eles estejam fatalmente suspensos; e os contagiantes alívios cômicos com que somos agraciados a cada três minutos (um crítico mais severo talvez dissesse que o filme todo é um grande alívio cômico).
No entanto, todo o cuidado com a criação não impede o filme de comunicar para seus espectadores um mundo tipicamente simplificado, potencialmente desencaminhador. Digo “tipicamente” porque Jojo Rabbit é um filme do seu tempo, que navega calmamente nas expectativas e demandas de um público que leva embotado o seu sentido para as relações entre ficção e realidade de que tenho falado, semana passada e agora.
Nossos inimigos nunca são enfrentados como o que são, mas como estúpidos ou mal-intencionados — esse falso dilema que nos aprisiona sempre que temos falado de política
Veja, então, um modo muito específico de ficcionalizar a realidade. Corte para os anos 1940: os nazistas são maus; eles lavam cérebros infantis, e treinam meninos de dez anos para a guerra; eles veem mulheres como máquinas de parir; eles são insensíveis à dor e ao sofrimento dos seus — até mesmo das suas crianças; eles cultuam a ignorância e — ignomínia! — oferecem cigarros aos seus pobres aprendizes. Vocês veem, eu posso continuar indefinidamente; o filme dá livre vazão às suas caricaturas. É claro que na ficção e nessas comédias leves pouco importa o que seja verdadeiro ou falso — e não estou acusando um blockbuster de espalhar fake news sobre o nazismo. Nem se trata de responsabilizar os artistas pelos efeitos nocivos de suas obras. (Não queremos repetir Platão, que em sua República fez Sócrates defender a censura e o controle estatal da produção da ficção — para o bem maior da polis.) Nem se trata de avaliar esse filme como um evento isolado, mas de examinar a mentalidade de que ele compartilha. Nossos inimigos nunca são enfrentados como o que são, mas como estúpidos ou mal-intencionados — esse falso dilema que nos aprisiona sempre que temos falado de política.
Não saberemos lidar com o nazismo, um dos momentos mais desprezíveis da civilização ocidental, se não entendermos suas motivações profundamente humanas — e, portanto, cheias de zonas cinzentas, frequentemente a meio caminho entre o total desrespeito pela diferença e as melhores intenções de elevação da humanidade. Os próprios nazistas viam a si mesmos desta última maneira, e suas ficções (algumas das quais produzidas com maestria) os representavam precisamente assim.
Entender as zonas cinzas é o primeiro passo, mas há um segundo, ainda mais difícil: buscar mapear o terreno pantanoso dos valores que animam esse outro inaceitável — o fascista — antes de nos deixarmos nausear, antes que nossa repugnância nos turve a vista e o intelecto, antes que nossos juízos de valor afastem para além de qualquer compreensão o fato de que tantos homens e mulheres tenham sucumbido a promessas genocidas, acreditando com isso purificar o mundo. Se conseguirmos essa proeza do discernimento nesse caso extremo, o nazismo, estaremos escolados para casos menos graves, mas que, 75 anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial, nos causam repulsa semelhante, guardadas as proporções. Veja, então: não se trata de relativizar os males do nazismo, como diriam alguns de estômago mais sensível, mas de um exercício de compreensão, para nos prepararmos para resistir ao fascismo sem fazer dele uma caricatura.
Agora, ao Brasil dos anos 2020. Não estamos, ainda, diante do fascismo. Mas seria autoengano julgar que desse mato não sai um Mussolini, e que do matagal não sairão camisas negras. Hoje podemos rir à vontade do Duce, ou do Führer — desde que saibamos levar a sério as situações sérias; e isso implica não cair no engano de que apenas a estupidez ou a pura maldade podem produzir isso que nos toca como monstruosidades. E o que vale para o passado vale ainda mais para o presente: rir de Bolsonaro ou Trump é um alívio, mas é também escapismo. Tratá-los como caricaturas antes de saber de onde eles vêm, e quais valores profundos eles representam, é erro de principiante; enquanto surramos espantalhos, baixamos a guarda para golpes reais, que virão!
Daí porque o excelente Jojo Rabbit não nos serve. Ele é de um escapismo estranho, tenso, novo, que vale a pena ver, mas ainda assim escapismo. E, sim, ele é um manifesto contra a guerra — e precisamos lutar contra a guerra e sua moral da violência. Mas não é fugindo dela que a venceremos. Não foi fazendo de conta que os adversários eram parvos, inaptos ou ignorantes que as melhores ações da resistência tiveram êxito. Foi preciso compreender sua estratégia, entender as causas de suas vitórias, conhecer o inimigo.
Somos feitos também de nossas ficções — e fazemos mal quando tentamos separá-las de nossa realidade, assim como quando tentamos separar nossos valores da verdade que vemos através deles. É esse o tipo de animal que somos. Pode, um dia, haver outros tipos, que vejam o mundo em suas cores reais e não estejam condenados, como nós, a enfeitá-lo com as paletas que nos foram dadas. Mas eis o subjetivismo a que estamos presos: nossa verdade é o reflexo do que somos. Agora, precisamos cuidar de nos elevar, para desse modo criar um mundo mais elevado, a despeito daqueles que querem rebaixá-lo.