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A última bolacha do pacote

Existe um momento que costuma anteceder imediatamente os confrontos – sejam estes brigas de rua, contendas entre torcidas organizadas, conflitos de policiais com manifestantes ou mesmo batalhas em uma guerra. Nesse instante pré-pugilato, cada grupo volta o olhar para seu respectivo lado e calcula com quem pode contar para ganhar o duelo. Às vezes é uma questão de segundos para reunir coragem e ir pra cima de quem pode estar em maior número, ou mais bem preparado – isso quando a escassez de apoio não faz minguar a confiança. Em outras ocasiões, o pistoleiro nem sequer levanta as armas. Em outras, ainda, dá boiadas para não entrar na briga, e sai dizendo aos quatro ventos que “isso não vale a pena”.

De todo modo, é nesse momento pré-contenda que todos fazem cálculos. E na política não é diferente: no front do legislativo, o núcleo duro do governo calcula quantos votos precisa negociar com o centrão para evitar a deposição no curto prazo; o centrão, por sua vez, calcula quanto vale a desidratação do bolsonarismo; já a oposição vai angariando insatisfeitos em seu cálculo de multiplicar as massas.

Outra conta perversa que com frequência se impõe é a da pandemia: a contagem de corpos, pesadelo de todos. Daqueles que aceitam conviver com a morbidez e põem os números na ginástica para se enxergar os resultados de uma panaceia qualquer. Mas também daqueles que aceitaram a realidade – dessa vez implacável como poucas vezes se viu na história – e agora olham para o lado do ordenamento social enquanto tomam fôlego para encampar essa batalha.

Entre o cálculo político e o da contagem dos corpos se situa um grupo que, desde antes da eleição de 2018, tem capitaneado um discurso de reforma do Estado, plataforma central do governo, e que, agora, tem assistido com pesar o espancamento frequente de seus interesses pelas práticas (mundialmente adotadas) de combate à pandemia. São os autodesignados empresários. No Brasil, segundo pesquisa do Global Entrepreneurship Monitor (GEM) de 2020, eles são, ou eram, quase 50 milhões de pessoas – cerca de um quarto da população do país e 38% da população economicamente ativa.

O crescimento de seu quadro associativo, ou, como dizem os especialistas, seu membership growth (o aumento do número de pessoas que se declaram nessa categoria), nos últimos quinze anos tornou-os um importante incremento do cálculo político no país. Essa expansão se deu, num primeiro momento, pela melhora nas condições econômicas no país e, em anos recentes, pela queda na oferta de vagas formais no mercado de trabalho.

Com ressalvas feitas ao “como”, o “o que” de Guedes era um símile do que constava na maioria dos programas de candidatos postulantes à cadeira hoje ocupada por Bolsonaro. De lá pra cá, muita coisa mudou

No caldeirão do empreendedorismo se cozinham subgrupos bem heterogêneos, que vão de uma massa – mais de 70%, segundo pesquisa do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) – com rendimentos de menos de três salários mínimos até bilionários. Entre eles, no entanto, há muitos interesses em comum. A desoneração fiscal é o mais imediato, mas o desregramento trabalhista também é causa partilhada. Essa agenda, quando conjugada ao crescimento do quadro associativo desse grupo, é material vasto para explicar os holofotes liberais que o nome Paulo Guedes atraiu para o governo ainda na época da eleição – e por que, até hoje, em meio a uma crise sem precedentes, sua posição seja observada com imensurável atenção.

Já o que causa espanto é o que vem sendo propagado pelo mentor econômico do governo – sob aplausos de seus eleitores mais fiéis. Guedes, já durante a eleição, trazia ao palco, diante de uma plateia amuada pela crise persistente, suas visões sobre os caminhos para o desenvolvimento nacional. Havia ali um diagnóstico bem lúcido sobre a situação da economia brasileira, calcado na necessária reforma tributária e na descentralização da atuação do Estado como agente econômico. Com ressalvas feitas ao “como”, o “o que” de Guedes era um símile do que constava na maioria dos programas de candidatos postulantes à cadeira hoje ocupada por Bolsonaro. De lá pra cá, muita coisa mudou, e mudou muito – grifo duplo no muito.

As ressalvas do “como” se multiplicaram antes mesmo da eclosão da covid-19 em Wuhan. O país recebia resultados pífios no mercado de trabalho e encerrava 2019 com prognósticos nada otimistas para o tecido econômico: 11,6% de desemprego (IBGE, dez. 2019), com viés de aumento, e ainda nos mesmos patamares históricos que levaram Guedes e seu chefe ao governo. A revisão do método era necessária para qualquer chicago-boy-estagiário no Ministério da Economia: Bolsonaro foi eleito com a agenda de reformas de Guedes, que não se concretizou plenamente em grande medida pelo circo permanente do Planalto, a despeito dos níveis elevados de boa vontade do invisível mas sempre onipresente mercado.

Guedes – ao menos publicamente – não só deixou de aventar a inevitável mudança de estratégia, como continuou a repetir que a economia vinha muito bem antes da crise alavancada pela covid-19. Mesmo depois de ver seu chefe levar um humorista ao conhecido cercadinho do Planalto para comentar o desanimador resultado do PIB – um dos crescimentos mais baixos entre as principais economias do mundo –, não revelou uma mudança de estratégia.

Mas voltemos à fonte do espanto partilhado por parte dos brasileiros atentos aos ditames econômicos do bolsonarismo. Desde a divulgação do PIB, o mundo presenciou um acontecimento que, para vários pensadores indiscutivelmente relevantes, certamente terá impacto nas estruturas sociais de todo o globo. Ainda é difícil tentar mensurar a magnitude desse impacto, mas não é difícil afirmar que muita coisa vai mudar. O que não mudou até agora, para o espanto de alguns e o fastio de outros, foi o diagnóstico de Guedes a respeito dos desafios que o Brasil deve enfrentar no futuro imediato; destarte, sua estratégia segue inexorável.

Mas, se por um lado existe muita gente espantada com a reação de Guedes, por outro há quem ainda aguarde ansiosamente a agenda que o superministro superliberal embrulhou para presente em outubro de 2018. Como mostrou o Datafolha em pesquisa de avaliação do governo publicada no fim de maio, os empresários são o grupo com maior aderência ao bolsonarismo. Essa tão ilustre malta tem ancorado suas esperanças de um futuro melhor na figura de Guedes e, como o próprio disse na fatídica reunião ministerial de palavrório questionável, mantém sua atenção voltada prioritariamente para o endividamento do Estado. Em poucas palavras, a grande luta desse mandato pode ser resumida, em última instância, à manutenção desse indicador.

A fala do ministro é mais uma explicitação da disputa de facções antagônicas na política brasileira, os trabalhistas e a elite conservadora, que agora se escancara durante a pandemia. A busca pelo balanço das contas públicas é outra face da discussão entre o afrouxamento no isolamento social. A realidade implacável do vírus não tem lado nessa briga, e seu impacto nas contas públicas é inevitável – um consenso entre os economistas.

Consoante a essa visão, fora do país a leitura da crise promove estratégias alinhadas de enfrentamento da pandemia e de seus impactos. Na Europa, praticamente todos aceitaram a realidade imposta pela contaminação, e a discussão sobre como os países vão lidar com esses problemas – a extensão dos auxílios emergenciais, os termos dos acordos de lay off, o relaxamento das políticas de mitigação do vírus. Mas a hesitação do Brasil em seguir um consenso tão amplo pode custar caro.

Ainda é cedo para tirar grandes conclusões a respeito do impacto, nos investidores internacionais, da errática condução brasileira da crise pandêmica (o pior resultado da série histórica pode ser apenas expressão de um mau humor generalizado), mas já é hora de questionar por que Guedes ainda é visto como a última bolacha do pacote bolsonarista. As contas de como a disputa política vai se dar nos próximos meses – e de como ela vai definir o destino do mandato de Bolsonaro – estão sendo feitas e, para todos os cenários, é necessário que aqueles que lideram as proposições consigam pintar um futuro no qual os empresários ganhem. Com uma coesão aparentemente mais forte nesse grupo de eleitores (em oposição aos assalariados), não haverá adesão a um plano para o Brasil se não houver boa solução para eles.

A desconcertante situação econômica, social e política atual, tanto para a massa trabalhadora quanto para o empresariado, deve ser o ponto de partida para a construção de propostas de futuro. E a urgência do combate à pandemia acelera esse processo. Mas o que todos aguardam é uma proposta de repactuação entre esses dois grupos que, quando andavam juntos e não xingavam a mãe do outro, promoveram as grandes transformações da sociedade brasileira.